Jerusalém - Em uma sexta-feira do mês de dezembro, o confronto no portão de segurança em frente ao Muro das Lamentações se repetia mais uma vez: para rezar de uma maneira reservada exclusivamente aos homens, há mais de duas décadas um grupo de mulheres faz peregrinações mensais a um dos locais mais sagrados para os judeus. Contudo, em nome da manutenção da ordem pública, o grupo tem sido impedido de rezar pela polícia israelense.
Depois que uma série de prisões no terceiro trimestre de 2012 chamou a atenção da opinião pública internacional, o grupo de mulheres chegou ao local e se deparou com um novo protocolo ordenado pelo rabino ultraortodoxo que controla o local. Para evitar que as mulheres desafiassem uma decisão da Suprema Corte que as impede de usar vestimentas rituais em frente ao muro, policiais as impediram de levar esses trajes ao local.
- Como pode dizer isso para mim? - questionou a imigrante canadense Bonna Devora Haberman, de 52 anos, uma das fundadoras do grupo "Women of the Wall" (mulheres do muro) em 1988. - Sou judia. Este é o meu Estado.
O policial nem se moveu. - No Muro das Lamentações você não pode rezar com o talit -afirmou, referindo-se ao xale ritual que Haberman levava em sua mochila. - É proibido entrar com ele.
Após anos de conflitos políticos e legais, o movimento defende que as pessoas possam ir vestidas como bem entenderem ao local de oração e se tornou uma causa de disputa entre judeus liberais nos Estados Unidos e no mundo todo, embora tenha dificuldades para ganhar força em Israel, onde os ultraortodoxos ainda detêm o controle da vida pública.
Esse confronto aprofundou a divisão entre o Estado judaico e a diáspora judaica, na qual alguns de seus líderes têm se tornado cada vez mais francos nas críticas contra as políticas israelenses em relação aos assentamentos em território palestino; contra as leis e propostas de leis consideradas antidemocráticas e discriminatórias em relação a cidadãos árabes; o tratamento das mulheres; e o controle ultraortodoxo em relação a assuntos como a conversão e o casamento.
Ainda que mais de 60 por cento dos judeus dos Estados Unidos se identifiquem com movimentos reformistas ou conservadores - segundo os quais homens e mulheres têm o mesmo papel durante as orações - e que muitas feministas tenham passado a utilizar as vestimentas rituais, em Israel apenas 10 por cento dos judeus se identificam com esses movimentos.
Na verdade, cerca de metade dos judeus israelenses se considera secular e especialistas afirmam que a maioria das pessoas que acreditam que a ortodoxia seja a verdadeira forma de judaísmo sente-se alienada em locais sagrados como o Muro das Lamentações, pois para elas, mulheres que usam o talit para rezar fazem parte de uma tendência trazida de fora.
(A lei judaica exige que apenas os homens rezem diariamente, embora muitas mulheres assumam voluntariamente essa obrigação. Além disso, a lei também afirma que as mulheres não devem se vestir como homens.)
- Os israelenses seculares acham que isso não é problema deles e acreditam que essas mulheres não passem de um bando de americanas loucas - afirmou Shari Eshet, representante israelense do Conselho Nacional de Mulheres Judias, com sede em Nova York. - Isso é vergonhoso para Israel e para os judeus, mas a comunidade judia dos Estados Unidos está começando a perceber que o assunto é bastante delicado.
A crescente agitação em torno do muro faz parte de um conflito mais abrangente sobre as questões de gênero no judaísmo. Nos últimos meses, diversas mulheres venceram ações judiciais contra a segregação imposta em bairros religiosos, ônibus e calçadas de Israel. Entretanto, uma frota de ônibus deixou de aceitar anúncios com imagens de pessoas depois que vândalos religiosos passaram a apagar os rostos de mulheres em nome do recato.
- O próximo passo do que significa ser um Estado judaico está sendo definido agora mesmo - afirmou Elana Sztokman, diretora da Aliança Judaica Ortodoxa Feminista, que está escrevendo um livro com um capítulo sobre o grupo Women of the Wall. - Precisamos descobrir o que Israel deseja e qual papel realmente queremos que a religião tenha no Estado. As decisões estão sendo tomadas sem a participação das mulheres.
O grupo Women of the Wall foi fundado em dezembro de 1988, quando turistas que haviam vindo a Israel para participar de uma conferência feminista resolveram levar os Rolos da Torá que haviam trazido dos Estados Unidos para uma sessão de orações no Muro das Lamentações, parte das muralhas que cercavam o Templo de Herodes. Desde então, o grupo volta 11 vezes ao ano para rezar durante o Rosh Hodesh, o primeiro dia do mês hebraico, uma ocasião adotada por feministas judaicas.
- O questionamento não surgiu em Israel, foi trazido de fora - afirmou Anat Hoffman, líder do grupo. - E muitas das melhores invenções de Israel foram importadas - acrescentou. - Por exemplo: o sionismo.
A Suprema Corte de Israel decidiu em 2003 que mulheres não poderiam trazer Torás, nem rezar com vestimentas rituais em frente ao Muro das Lamentações, afirmando que isso causaria problemas para a ordem pública. A corte designou uma pequena parte do muro, conhecida como o Arco de Robinson, para orações mistas com trajes completos.
Porém, as mulheres reclamam que a separação não é igualitária. Atualmente, o grupo trabalha em uma nova petição na Suprema Corte para enfrentar os 13 membros da direção da Fundação do Patrimônio do Muro das Lamentações, que governa o local, afirmando que sua maioria ultraortodoxa não representa o público judeu.
O rabino Shmuel Rabinowitz, líder da fundação, afirmou que as mulheres não passam de radicais. "Elas não vêm para rezar, vêm para protestar", afirmou em uma entrevista. - Querem nos machucar, querem ferir o povo judeu e distorcer a verdade.
A primeira prisão aconteceu em 2009. Desde junho, outras 16 mulheres foram presas, mas a maioria foi solta e os casos foram abandonados depois de concordarem em permanecer um período sem visitar o Muro das Lamentações.
Em outubro, Hoffman se negou a assinar o acordo e passou a noite na cadeia.
Em seguida, escreveu ao Huffington Post contando que foi "algemada, revistada e deixada sobre o chão", antes de ser "trancafiada em uma cela minúscula com uma jovem russa chorosa que havia sido acusada de prostituição".
A indignação tomou conta da diáspora. Milhares de pessoas se juntaram para sessões de oração.
O embaixador de Israel nos Estados Unidos, Michael Oren, afirmou que recebeu uma enxurrada de reclamações e precisou realizar duas teleconferências com rabinos americanos. Sob pressão de grupos internacionais, a Agência Judaica - braço do governo israelense - aprovou uma resolução no dia 30 de outubro exigindo uma "abordagem satisfatória à questão das orações no Muro das Lamentações".
Em novembro, mais seis mulheres foram presas. Então, no dia 14 de dezembro, quatro outras mulheres foram detidas por contrariarem as regras sobre entrarem no local portando seus talits.
A imigrante canadense Rachel Cohen Yeshurun levou um livro de orações e gritou o comando que exige o uso das vestimentas, sendo levada para a delegacia antes do início das orações. Ela foi seguida por duas adolescentes inglesas e pela rabina Elyse D. Frishman, de Nova Jersey, editora de um popular livro de orações reformistas.
A estudante californiana Sharon Gretz Strater, de 27 anos, chorou ao saber que teria de entregar o xale costurado pela mãe em comemoração a seu Bat Mitzvah, mas acabou aceitando. Haberman contou que seu xale foi desenhado pelos cinco filhos, dois dos quais estão servindo no exército de Israel. Por isso, a ativista canadense não quis entregar o talit e depois de muito choro e argumentação acabou conseguindo passar.
- Eles me fizeram jurar que não iria tirar o talit e o tefilin da bolsa - afirmou, referindo-se ao xale e às caixas de couro que contêm as preces que usa todos os dias, conforme exigido aos homens. - É impressionante ver que estão chamando nossos policiais para fazer isso.
Meia hora depois, Haberman estava dançando e cantando hinos na seção feminina do Muro das Lamentações, com as lágrimas substituídas por um sorriso que dizia ser de "êxtase". Logo em seguida, estava com outras pessoas no Arco de Robinson, todos cobertos por seus talits enquanto liam as orações.
The New York Times
Conflito em torno de orações se aprofunda em local sagrado para judeus
Grupo luta pelo direito das mulheres rezarem vestidas da maneira que quiserem no Muro das Lamentações, em Jerusalém
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