Depois de sobreviver ao acidente aéreo com o avião Fairchild da Força Aérea Uruguaia que levava um time de rúgbi uruguaio, junto com amigos e familiares, para uma partida em Santiago, e de resistir a 72 dias no pico da Cordilheira dos Andes com outros 15 colegas, Daniel Fernández Strauch, 66 anos, passou três décadas evitando falar do assunto em público. Incomodava, por exemplo, o interesse excessivo nos detalhes sobre a alimentação a base de carne humana. Ao lado dos primos Adolfo e Eduardo Strauch, o trio tinha como tarefa cortar e dividir de forma justa a carne dos corpos das vítimas, conservados na neve da montanha.
Há 10 anos, depois de um reencontro do grupo em Santiago, ele resolveu falar e ajudou a criar a Fundación Viven, que realiza campanhas humanitárias. Confira trechos da entrevista concedida de Montevidéu a Zero Hora por telefone:
Zero Hora - O senhor permaneceu calado durante 30 anos. Por quê?
Daniel Fernández - Minha meta era voltar para casa, para a minha família. Pensei que a história já tinha passado. Mas me dei conta depois que as pessoas precisavam ouvi-la. Em 2002, quando volto ao Chile em um reencontro nosso, vejo que a história ainda interessa ao mundo. Tragédias e acidentes ocorrem todos os dias, mas a nossa se mantinha. Quando criamos a página da fundação (http://www.viven.com.uy), vi que as mensagens deixadas pelas pessoas demonstravam como nossa história as ajudava. Foi quando passei a dar conferencias e a contar o que aprendi.
ZH - Em que a história ajuda as pessoas?
Fernández - Creio que todas as pessoas passam por situações críticas e pensam que seus problemas são mais importantes. Agora, quando comparam com casos extremos como o nosso, pensam "se esta gente saiu, por que eu não posso?". Todos se dão conta de que têm uma força interior adormecida. Essa é a base da mensagem.
ZH - Como é a amizade entre os 16 sobreviventes?
Fernández - Não somos nem amigos nem irmãos. Somos mais do que essas duas coisas juntas. Apesar de que muitas vezes dizemos disparates, logo nos perdoamos. Na montanha, ocorreram brigas, mas foram poucas porque não havia lugar para discutir. O que se consolidou lá foi um grupo muito forte, muito unido porque ninguém poderia se salvar sozinho. Todos éramos importantes. Em Montevidéu, vivem 14 dos sobreviventes e nos vemos continuamente, mas o 22 de dezembro é uma data sagrada.
ZH - Qual o momento mais difícil que o senhor guarda na memória?
Fernández - Todos foram difíceis, mas o mais crítico foi o momento do acidente. E quando tivemos de tomar a decisão de comer os corpos. Era a única opção que tínhamos. Durante dois dias, estávamos convencidos de que aquilo precisava ser feito, mas não tínhamos coragem. No início, tínhamos alguns tabletes de chocolate e uma garrafa de vinho. De sobremesa, cada um podia chupar um pouco de pasta de dente. Mas depois, não havia opção. Meus primos e eu começamos a fazer a repartição. Comíamos uma vez ao dia, um porção de carne.
ZH - Como era o trabalho em equipe?
Fernández - De tudo que aprendemos na montanha, o mais importante foi o trabalho em equipe. Todo o tipo de trabalho era importante. Sempre digo que, se um dia tivesse de montar uma equipe, seria como aquela.
ZH - O senhor ainda pensa muito naquele episódio?
Fernández - Sim, porque ajudamos muita gente. Entendo que esta história não nos pertence.
ZH - Em que a tragédia influenciou a formação de sua personalidade?
Fernández- Basicamente para mim e para os demais, influenciou na maneira de ver os problemas. Não deixo que os problemas me paralisem. O importante é ter uma casinha com comida. Depois, penso na solução. Creio que a maioria de nós se deu conta disso. Meu filho sofreu um acidente e entrou em coma. O prognóstico era de que tinha 5% de chance de sobreviver. Ele se salvou.
ZH - O senhor ficou com medo de viajar de avião?
Fernández - No começo, subia ao avião e sentia aquele cheiro e ficava muito nervoso. Com o tempo, passei a voar e agora até desfruto. Ando mais feliz de avião do que dirigindo um carro.
ZH - O que faz a fundação?
Fernández - A maior parte dos recursos que arrecadamos com conferências vão para a fundação. Ajudamos pessoas em situações difíceis. Neste momento, estamos com uma campanha de doação de órgãos, um projeto de diagnóstico de cardiopatia de bebês e o assentamento de pessoas que vivem em terrenos irregulares. Conseguimos terrenos e as ajudamos a construir casas definitivas.
ZH - Qual é a leitura que o senhor faz sobre o abandono das buscas 10 dias após o acidente?
Fernández - Eles seguiram um procedimento. A tecnologia era muito diferente de agora. Este ano, caiu um avião a poucos quilômetros da costa de Montevidéu e logo abandonaram as buscas. Se um avião cai no mar e não aparece nada três ou quatro dias depois, se supõe que todos morreram. O que aconteceu conosco, de poder aterrissar na montanha sem que o avião se desintegrara foi talvez um milagre.
ZH - Mudou algo no procedimento de buscas e nos voos sobre a cordilheira?
Fernández - Não creio. Um avião hoje tem caixas pretas que emitem sinais. É muito mais fácil localizar.