De março de 2016 até o mês passado, a Delegacia de Repressão a Roubos da Polícia Civil do Rio Grande do Sul investigou uma quadrilha que é apontada como a responsável por pelo menos nove extorsões mediante sequestro e cárcere privado, que começam com o chamado Golpe do Chute – falsos anúncios em classificados de produtos que não existem.
Os criminosos enganavam vítimas com supostos eletroeletrônicos, cargas de algodão e alumínio, máquinas agrícolas e chapas de MDF. Ganhavam milhares de reais dos alvos por meio de transferências bancárias e, depois, as libertavam. Pelo menos 15 pessoas de Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo foram vítimas.
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Esse tipo de crime aumentou 160% nesse ano – foram 13 casos até junho, contra cinco em 2016, conforme a Secretaria da Segurança do Estado.
– O Rio Grande do Sul tem histórico desse tipo de caso. Se verificou que o Estado acabou criando expertise nessas ocorrências. Então, difundiu a extorsão mediante sequestro. Um dos primeiros criminosos desse ramo foi preso em 2011 e, da cadeia, arregimentou outros para arrebatar vítimas nas rua – comenta do delegado Joel Wagner, do Deic.
Neste domingo, o Fantástico exibiu reportagem produzida pela RBS TV que mostrou como agiam os criminosos gaúchos que atraíam vítimas Brasil afora. Confira abaixo.
OS ANÚNCIOS
A quadrilha publicava anúncios em sites, geralmente de produtos de grande valor. A Polícia Civil gaúcha conseguiu localizar anúncios de máquinas agrícolas (foto acima), retroescavadeiras e supostas cargas de produtos que seriam salvas de acidentes por seguradoras e colocadas para venda, por preços mais atraentes.
Entre esses produtos, eletroeletrônicos, algodão, soja, alumínio e substâncias químicas. É tudo mentira. Os anúncios estão em sites verdadeiros de classificados, mas são falsos. As máquinas e cargas não existem.
– Tinha um anúncio na internet de um produto que comercializo. O preço era atraente. Liguei para o cara, muito entendido no assunto. Jamais imaginaria um sequestro. Cheguei em Porto Alegre e fui até um galpão, desconfiei e disse que não tinha o dinheiro e ele falou: “Tu negociou comigo, tu tem. Algo pode acontecer” e me apontava a pistola – relatou um empresário de Florianópolis.
A TRAPAÇA
Tudo começa com a a negociação. Um dos criminosos é responsável por conversar com o interessado, geralmente fazendeiros e empresários. No contato, mostra-se amigável e conhecedor do produto que vende. Sabe detalhes técnicos e valores de mercado. De início, diz que precisa comercializar rápido e já fala em descontos. A vítima, atraída por facilidades, é convencida e vem ao Estado. Os clientes, na sua maioria, chegam de avião ao Rio Grande do Sul. O bandido, inclusive, facilita o translado do então comprador.
Na sequência, a quadrilha partia para o sequestro. O criminoso que negociou com a vítima na internet ou por telefone normalmente não aparece e diz que um funcionário, amigo ou familiar vai encontrá-lo. Os assaltantes buscam vítimas de carro no aeroporto e, às vezes, na porta de hotéis. No caminho, mostram armas e anunciam o sequestro. Vendam as pessoas ou colocam óculos com lentes cobertas (foto abaixo) para que não vejam o caminho para onde eram levados.
Durante a investigação, a polícia descobriu quatro cativeiros. Dois em Alvorada, um em Gravataí e outro na zona leste da Capital. São casebres sem reboco e forro, úmidos e com colchões no chão. Geralmente, alugados ou emprestados.
– Tivemos casos que foram evitados por meio da investigação. Possibilitou, pelo menos, resgatar três vítimas. No início de 2017, chegamos a um cativeiro em Alvorada, onde duas vitimas do Paraná eram mantidas após virem ao nosso Estado com a finalidade de comprar uma retroescavadeira – conta o delegado João Paulo de Abreu, do Deic.
No cativeiro, ameaçadas de morte, as vítimas são obrigadas a conversar normalmente com os familiares, amigos e sócios por WhatsApp ou ao telefone. Como vieram para fechar negócios de alto valor, os criminosos sabem que havia reserva de dinheiro.
– Me botaram algemas, aqueles lacres plásticos, e assim fiquei toda noite. No dia seguinte, tiravam para comer e depois colocavam de novo. Nas ligações, o celular era no viva-voz. Fiz transferência, liguei para o gerente de banco. Eles faziam com que parecesse trabalho para fora e não sequestro – descreveu um empresário de São Paulo, do ramo de tecnologia, que foi vítima da quadrilha.
Os bandidos encaminham contas bancárias para a realização dos depósitos. A polícia tem registro de vítimas que ficaram três dias amarradas nesses cativeiros. Após os depósitos, são liberadas em rodovias ou na região do aeroporto Salgado Filho.
PRESTE ATENÇÃO
A Polícia Civil alerta para sempre pedir cópia das notas fiscais. Em caso de máquinas agrícolas ou outros veículos, pedir o número de chassis ou do motor. Com isso é possível rastrear a origem das máquinas junto aos fabricantes. E, por fim, desconfiar de descontos ou valores muito atraentes.
Repórter se passa por comprador para encontrar criminosos em Porto Alegre
A reportagem teve acesso a um desses anúncios falsos, em um site real, especializado em agronegócio. Eles anunciaram uma colheitadeira seminova. A máquina agrícola era oferecida por R$ 360 mil. O repórter entrou em contato com o suposto vendedor como se fosse um estancieiro de São Borja, fronteira oeste do Estado. Primeiro pelo site, depois por telefone.
Sem saber que estava falando com um repórter, o homem que se apresentou como Rui (na foto acima, quando foi preso), foi extremamente simpático e disse ser um produtor rural. Entre uma conversa e outra, ele buscava tirar informações da possível vítima. Já na primeira conversa por telefone deu descontos e ofereceu facilidades para fechar o negócio:
Rui (suspeito) – Olha Seu Fábio, proposta me aparece um monte, mas são de outros Estados e querem fiado. Dou a preferência para o senhor que é daqui. Me dá uma entrada de uns R$ 100 mil que tô precisando quitar umas contas e o resto podemos parcelar.
Fábio (repórter) – O senhor me dá o frete?
Rui (suspeito) – Claro, podemos negociar. Tenho a carreta de um amigo que faz esse frete. O bom é o senhor vir pra gente fechar esse negócio o quanto antes. Vem ver.
Fábio (repórter) – Ela (colheitadeira) está em Porto Alegre?
Rui (suspeito) – Não. Ela fica aqui num sitiozinho, aqui onde eu moro em Viamão. Pode vir, conhece, pode ficar até aqui em casa.
Fábio (repórter) – Vou tentar ir essa semana.
Rui (suspeito) – Combinado. Vem, já olha a máquina, já jantamos aqui em casa. Prefiro vender pro senhor que conhece, tem muito rolo nesse meio.
No dia seguinte, a reportagem entrou em contato novamente para acertar a visita. Foi informado a Rui (suposto vendedor) que a viagem seria feita de avião de Passo Fundo até a Capital. Também foi dito que seria levado parte do dinheiro para dar entrada na compra. Sabendo disso, o criminoso disse que era perigoso andar com dinheiro em Porto Alegre e se ofereceu para buscar o cliente no Terminal 2 do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Simulando ter chegado de avião, o GDI foi ao encontro de Rui. Por telefone, ele informou que não teria como ir ao local, mas que um sobrinho de nome Augusto estava esperando.
Repassadas características diferentes ao criminoso, o telefone da reportagem foi desligado, terminando os contatos. Pelas informações repassadas, o GDI encontrou o falso sobrinho que procurava o cliente pela área de desembarque. Com uma câmera escondida foram registradas imagens do homem. Na verdade, o tal sobrinho era Fernando Manera Cândido, 26 anos, investigado pela polícia e um dos responsáveis por buscar as vítimas no aeroporto e levar para os cativeiros.
O negociador, que se identificou como Rui, é o suspeito procurado pela Justiça do Paraná, pelo mesmo crime. Vladimir Aparecido Carvalho Grade, 51 anos, é apontado pela investigação da Polícia Civil gaúcha como o mentor intelectual dos crimes e responsável pelos falsos anúncios que atraiam as vítimas.
Operação prende 16
Os dois criminosos que negociaram com a reportagem foram presos com outros 14 integrantes da quadrilha, no fim de julho. A reportagem acompanhou com exclusividade a Operação Cotton (alusão ao primeiro anúncio dos criminosos – uma carga de algodão), da Delegacia de Repressão a Roubos. No dia 20, 60 agentes realizaram prisões e buscas na Capital, Alvorada, Gravataí, Igrejinha e em Cidreira, no Litoral. Nesse último local, fica a casa de Vladimir Carvalho e de onde partiam os falsos anúncios.
– Eles começam com um estelionato, anunciando um produto que não existe. Um criminoso, que se passa por vendedor, está ocupando um site idôneo – explica o delegado Wagner.
O delegado Abreu é taxativo:
– Os autores serão denunciados por extorsão mediante sequestro. Elas praticaram um dos crimes mais graves do Código Penal Brasileiro.
CRONOLOGIA DA VIOLÊNCIA
2016
Março
– Dois empresários de São Paulo foram atraídos ao Estado para realizar a compra de uma carga de algodão. Acabaram levados para o cativeiro e, depois de dois dias de ameaças, libertados ao pagar R$ 300 mil de resgate.
Novembro
– Um empresário de São Paulo veio ao RS para comprar eletroeletrônicos anunciados em um site. Foi recebido no aeroporto pelos criminosos. No caminho de Gravataí, onde estaria o galpão com os produtos, foi anunciado o sequestro. Ficou dois dias no cativeiro, pagou R$ 60 mil e foi libertado.
2017
Fevereiro
–Três empresários vieram de Santa Catarina para comprar uma máquina agrícola. Foram libertados depois de pagar R$150 mil.
Março
–Dois proprietários de uma empresa de madeira de Caxias do Sul, vieram até a Região Metropolitana negociar uma carga de chapas de MDF. Foram rendidos em um posto de gasolina e só libertados depois de depositarem R$ 70 mil nas contas dos criminosos.
– Um empresário e a namorada vieram de Mato Grosso do Sul para finalizar a compra de uma carga de 58 toneladas de algodão. Foram recebidos no aeroporto. No caminho, foram sequestradores e levados para cativeiro. Realizaram transferências bancárias para contas dos bandidos, no total de R$ 310 mil. Só foram libertados quando o Banco Central desconfiou das transferências e emitiu alerta entrando em contato com a vítima. Os criminosos se assustaram e libertaram o casal.
Maio
– Dois sócios do Paraná vieram ao Estado para comprar uma retroescavadeira no valor de R$ 150 mil, anunciado em um classificado online. Também foram recebidos no aeroporto e levados para Alvorada. Nesse caso, agentes da Delegacia de Roubos do Deic, ao receber informações, conseguiram localizar o cativeiro, resgatar as vítimas e prender um dos sequestradores, que estava armado. Foi nesse crime que a casa usada como cativeiro foi incendiada e o proprietário, Marcos Ismael Gonçalves, encontrado morto, dias depois.
Junho
– Um empresário de SC veio a Porto Alegre de carro para negociar carga de alumínio. O encontro foi num estacionamento na Zona Leste. A vítima desconfiou e não quis entrar no carro dos criminosos. Saíram a pé. No caminho, foi ameaçado com revólver, jogado num veículo e levado para um cativeiro no Partenon. A ação era monitorada pela polícia, que invadiu o cortiço e prendeu três sequestradores. A vítima pagaria R$ 200 mil.
– Dois agricultores vieram de Mato Grosso do Sul de carro para comprar uma colheitadeira de milho no valor de R$ 330 mil. O anúncio foi visto em um site especializado em agronegócios. Chegando ao Estado, eles se hospedaram em um hotel em Gravataí. A ação criminosa estava sendo monitorada e a polícia conseguiu avisar os empresários antes de serem rendidos pelos bandidos.
Julho
– Dois produtores rurais vieram do Paraná para negociar uma máquina agrícola. As vítimas foram levadas para um casebre na periferia de São Leopoldo. O cativeiro foi descoberto por agentes da Delegacia de Furto e Roubo de Veículos de São Leopoldo, em uma abordagem ao tráfico de drogas. Segundo as investigação, fazem parte da mesma quadrilha.