Cenários que eu gostaria de encontrar no Acampamento Farroupilha. Um galpão em que um grupo de peões fronteiriços, sentados, quietos, com os cotovelos escorados nas pernas, só olhassem o fogo, porque a fala, num galpão, muitas vezes é o que menos importa. Ou um grupo de gente da minha terra, o Rosário, que me falasse das coisas que sobreviveram na vila do Saicã da minha adolescência. Ou, naquele entrevero de gente e conversa do acampamento, alguém sozinho num piquete - à espera de um passante que espie para dentro e seja convidado: pois não, se achegue.
Não encontrei os homens silenciosos nem o pessoal do Rosário. Mas espiei para dentro do piquete Magia Gauderia. Magia? Dividindo espaço com aporreado, bagual, caudilho, guapo, macanudo?
- É um piquete esotérico?
- Outros já perguntaram o mesmo, mas não é - diz a moça pilchada.
É a personagem que eu esperava encontrar sozinha num galpão. Sueli Aparecida Leal Cardoso passa o dia no piquete à espera do marido e dos filhos, que voltam do trabalho quando anoitece e dormem ali. É uma das poucas patroas dos 384 piquetes. Acampa há mais de 20 anos. Ela manda na casa de costaneira, que gosta de ver cheia de gente:
- Minha avó, Conceição, foi quem sugeriu incluir magia no nome.
A patroa cruza a perna e a nesga desabotoada da bombacha uruguaia revela a serpente tatuada perto do tornozelo da perna direita:
- É a serpente do amor.
Ela e a família ergueram o galpão. Sueli aplicou R$ 6 mil de economias como auxiliar de serviços gerais encostada no INSS há três anos e meio por conta de um acidente. Ali, recebe amigos e desconhecidos:
- Não adianta vir pra cá e receber só quem a gente conhece. Um dia um senhor chegou, pediu um traguinho de cachaça, falou do Brizola e foi embora.
Su faz apresentações culturais, que podem tratar tanto do negrinho do pastoreio ou da lenda da erva-mate. Faz carreteiro, espinhaço, galinhada, põe Borghetinho, Luís Marenco ou Os Serranos no som e, quando vê, está todo mundo dançando. Nunca viveu no Interior. Mora no bairro Ipanema, zona sul de Porto Alegre. Este não vai desfilar, mas já abriu o 20 de Setembro, na frente de todo mundo, num cavalo emprestado pelo Exército. Seu sonho é ter um mangalarga marchador.
Tem um reboque em que junta tudo que precisa para acampar, engata num Fiesta e vai aos rodeios com o marido, Alessandro Goulart (técnico em eletricidade), e os filhos, Jonathan (auxiliar de produção) e Raphael (técnico em segurança). Se ganhasse na mega sena, compraria uma fazenda no Uruguai.
- Mas moraria no galpão. Queria poder conviver com os peões.
Su acha que as mulheres devem se intrometer mais, principalmente em ambientes machistas. E não se conforma com discriminações, muito menos de gays:
- Que se respeitem as diferenças. Todos devem respeitar e ser respeitados.
A idade? Não diz, porque não importa. O que importa é que ela se sente parte de um mundo feminino cada vez mais atrevido:
- Tem mulher presidente, governadora, na Petrobras, nas obras. Eu gosto de andar pelo parque e ouvir a saudação: bom dia, patroa.
A patroa chegou ao Parque Maurício Sirotsky Sobrinho no dia 17 de agosto. No período de chuvarada, enquanto a família erguia o piquete, acomodou-se com o marido sob uma lona. Hoje, dorme com Alessandro num mezanino. Os filhos se acomodam em colchões no galpão. De madrugada, os galos cantam no acampamento, e os homens vão trabalhar. Su fica de dona do galpão à espera de alguém que espie pela porta aberta e queira saber:
- Magia? Mas por que magia num lugar de grossos, guascas e manotaços?
- Porque, pra mim, tudo é magia.