O primeiro coração de porco geneticamente modificado transplantado em um ser humano apresentava um vírus suíno, de acordo com Bartley Griffith, que realizou o procedimento. David Bennett, de 57 anos, sobreviveu dois meses após a cirurgia inédita realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland (EUA), em janeiro. Ainda é cedo para apontar qual foi a causa da morte do paciente e o papel do citomegalovírus suíno nela, destacou.
"Estamos começando a entender por que ele morreu", disse Griffith, em evento da Sociedade Americana de Transplante, no dia 20 de abril, segundo a revista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a MIT Technology Review. O cirurgião acredita que o "vírus" pode ter sido o "ator" que desencadeou "tudo isso".
A sobrevida de dois meses de Bennett, de qualquer forma, é uma grande vitória para a medicina e para a ciência. Para comparação, o primeiro humano a receber transplante de coração convencional, em 1967, viveu mais 18 dias. Nos anos seguintes, a técnica foi melhorada e vem salvando milhares de vidas.
Ao Estadão, a Universidade de Maryland reforçou que a causa da morte ainda é estudada. A instituição apenas apresentou resultados preliminares em um evento científico. "A pesquisa continua averiguando várias causas potenciais. Entre essas causas potenciais está o estado avançado de insuficiência cardíaca do paciente antes do transplante", afirmou, em nota.
A Universidade declarou que não há evidências de que o vírus tenha causado uma infecção no paciente ou infectado quaisquer tecidos ou órgãos além do coração. Também disse que o porco doador foi criado em uma instalação projetada para evitar infecções, e que ele passou por diversas testagens - inclusive pouco antes do transplante.
Transferir vírus suínos inofensivos aos porcos para humanos e desencadear pandemias, por exemplo, sempre foi um temor dos pesquisadores do xenotransplante. Para que isso não ocorra, a edição genética é fundamental para inativá-los. Essas alterações também são importantes para evitar desencadear uma reação imunológica do organismo humano. O coração recebido por Bennett contava com dez genes modificados.
Segundo a revista do MIT, o citomegalovírus encontrado não é capaz de infectar células humanas, porém, pode estar associado a reações que prejudicam o órgão e o receptor. Estudos com babuínos mostraram que quando a presença do vírus era detectada, a sobrevida passava de mais de seis meses para poucas semanas.
Ao jornal americano The New York Times, Griffith contou que a equipe fazia exames frequentes para acompanhar a saúde do órgão e do paciente. Em um deles, 20 dias após o procedimento, pequenos sinais do vírus foram detectados. Passados mais 20 dias, Bennett ficou gravemente doente, e testes subsequentes mostraram um aumento acentuado da presença do DNA viral. A empresa de biotecnologia americana Revivicor, que cedeu o órgão, ainda não se manifestou.
O paciente, porém, sabia que corria esse risco antes de fazer o procedimento. Bennett não tinha outra escolha. Com doença cardíaca terminal, ele havia sido considerado inelegível para o transplante convencional ou para receber bomba cardíaca artificial. "Era morrer ou fazer esse transplante", declarou o americano. "Sei que é um tiro no escuro, mas é minha última escolha", disse.
A Food and Drug Administration (FDA), agência americana similar à Anvisa, no fim de 2021, deu autorização emergencial para Bennett receber o coração suíno.
Avanço
O procedimento pelo qual Bennett passou, junto a alguns outros testes pré-clínicos, inauguraram uma nova fase na pesquisa dos xenotransplantes (entre espécies distintas). Ganha espaço na comunidade científica a compreensão de que vale a pena autorizar testes do tipo.
David Cooper, cirurgião do Hospital Geral de Massachusetts (EUA) e um dos pioneiros nas pesquisas de xenotransplantes, disse à revista Nature que está na hora de "irmos para as clínicas" para ver como esses órgãos se comportam em humanos. Por ora, um grupo específico de pacientes deve receber o órgão modificado: doentes em fase terminal, quando o transplante seja a única terapia viável.
O transplante de um porco comum cria rejeição hiperaguda, que exige explante imediato. Por isso, cientistas modificam geneticamente esses animais. A edição envolve "knockouts" (bloqueios) e "knock-ins" (adições) de genes.
O pesquisador pega células de porcos recém-nascidos, bloqueia os genes responsáveis pela produção dos açúcares que geram a rejeição e insere genes humanos para moderar a resposta imune do paciente. A célula modificada é introduzida em um óvulo sem núcleo (sem material genético).
A busca por "órgãos adicionais" tem por trás uma limitação dos transplantes homólogos: não há órgãos suficientes para quem precisa e milhares morrem nas filas de espera - o que deve aumentar com a tendência de envelhecimento populacional.