Como é praxe na aviação, antes de se dirigirem para a aeronave, as tripulações se reúnem em uma sala do aeroporto, chamada DO (despacho operacional) para debater o briefing de voo. Naquele final de tarde chuvoso de 17 de julho de 2007, o DO de Congonhas, em São Paulo, estava lotado: de 10 a 12 tripulações, ou seja, mais de cem pessoas. Foi quando um despachante técnico entrou na sala e gritou, diante de pilotos e comissários:
– Caiu um avião! Caiu um avião!
Localizada no subsolo do terminal, a sala não tem janelas para a pista. Pilotos e comissários recorreram aos dois aparelhos de TV na sala.
– Ficamos ali, perplexos. De repente, vimos nas imagens uma placa escrito TAM – conta um comandante com mais de 20 anos na empresa.
Ao ver as labaredas que consumiam o voo 3054, que saíra de Porto Alegre em um Airbus A320, e suas 199 vítimas (187 delas a bordo), a sensação, descreve o piloto acostumado a frear aviões com tranquilidade bem antes do limite dos 1.939 metros da pista de Congonhas, é de um médico que, na sala de cirurgia, perde um paciente em procedimento que deveria ser de rotina:
– Quando há um acidente, é todo um trabalho que parece ter sido em vão.
Ao buscar rever no detalhe as falhas daquela noite, das 18h54min de 17 de julho até hoje, a aviação brasileira passou por uma revolução admitida por pilotos, companhias aéreas, autoridades, investigadores e especialistas.
Embora ninguém tenha sido punido criminalmente pela tragédia, houve aprendizados: empresas reviram processos, focando em treinamento de cenários que antes não eram previstos e em maior controle dos procedimentos de segurança; fabricantes levaram seus projetos de volta para a prancheta a fim de avaliar falhas; e governos fizeram o dever de casa.
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Essas são as partes mais visíveis e mensuráveis das alterações que tornam hoje mais seguro voar no céu brasileiro. Há uma parte invisível, de gestão. Pilotos experientes ouvidos por ZH explicam que havia, à época, uma obsessão por resultados e que, muitas vezes, a segurança ficava em segundo plano.
– Pressão por pousar, para fazer a coisa acontecer, por resultado, por aceitar avião de qualquer jeito, voar de qualquer jeito – conta um comandante da TAM que esteve diretamente envolvido com os fatos daquele dia.
Hoje, a operação está blindada, ou envelopada no jargão dos aviadores: protocolos de segurança fechados a interferências externas. Os A320 são maioria na frota da Latam, que nasceu da união da TAM e da LAN Chile, em 2012. Mas o fatídico voo 3054 não existe mais no cardápio da companhia.
Desde o acidente, o horror de quem estava a bordo é reproduzido nos simuladores de voo da companhia. Dados e monitores repetem o cenário de um pouso sob chuva, com pista escorregadia, sem grooving (ranhuras que aumentam a aderência ao solo que Congonhas não tinha) e aeronave com um dos reversores pinados.
Nelson Shinzato, diretor de Operações da Latam, explica que a companhia atendeu às 24 recomendações dirigidas pelo Centro de Investigações e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) no relatório final sobre o acidente, em 2009. Uma das medidas é a gravação dos dados de todos os voos para identificar possíveis falhas humanas ou técnicas. Esses relatos são aproveitados em retornos para tripulações e em treinamentos.
– O reforço foi no sentido de quando houver alguma dificuldade operacional, algum desvio, pequeno que seja em termos de procedimento, repassar por meio de boletim de comunicado para o grupo de voo – explica.
Para quem vive no ar, a percepção é de que a política da empresa está mais conservadora, em nome da segurança.
– Os manuais permitem que você decole com a pista encharcada, por exemplo. Já a TAM, não. Proibiu qualquer operação em caso de pista contaminada – explica um piloto.
Assim como qualquer acidente aéreo não tem uma única causa, o desastre de Congonhas só pode ser entendido no contexto de annus horribilis da aviação brasileira, nas palavras do professor de transporte aéreo da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Eduardo Leal Medeiros. Dez meses antes do acidente com a aeronave da TAM, um jato Legacy batera, em pleno ar, em um Boeing da Gol sobre a Amazônia. A queda do avião comercial deixara 154 mortos.
– O acidente da Gol levantou a orelha do pessoal para necessidade de investimento em controle de tráfego, que depende de três coisas: equipamentos, sistemas e pessoal – diz Medeiros.A Agência Nacional da Aviação Civil (Anac) havia sido criada meses antes, substituindo o Departamento de Aviação Civil (DAC). O acidente escancarou carências no treinamento de controladores de voo (com dúvidas sobre seu domínio de inglês) e abriu caminho para a primeira greve de sargentos (controladores) desde 1964. Passageiros reclamavam de frequentes atrasos nos voos e da infraestrutura dos aeroportos.
– O pessoal decidiu primeiro investir em terminais do que na pista. E os pilotos reclamavam que a pista estava escorregadia. Certamente, poderia ter sido feito investimento primeiro em segurança e depois em conforto – avalia o professor.
Então, veio a tragédia em Congonhas, e o país passou a questionar se o aeroporto, o segundo mais movimentado do país, deveria estar encravado no meio de uma metrópole ou ser deslocado para longe de áreas urbanas. Nunca pousar ali seria a mesma coisa.
Chamado a uma reunião com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Medeiros propôs a redução virtual da pista para que houvesse uma área de escape. A sugestão foi aceita.
Conforme a Anac, os pilotos hoje não devem considerar os 1.939 metros totais para pousar, mas 1.650 metros. Foi ampliada a frequência de manutenção da pista para evitar emborrachamento – a cada semana, são medidos o coeficiente de atrito, e, a cada 15 dias, de textura, segundo a Infraero. Estão proibidos pousos com um dos reversores travado – era o caso do voo 3054. A mesma medida passou a valer para outro aeroporto delicado, Santos Dumont, no Rio, cuja pista é menor (1,3 mil metros). Em Congonhas, o número de pousos e decolagens por hora também foi reduzido para 30.
– Naquela época (do acidente), muitas vezes, um avião demorava para pousar porque não tinha lugar para parar. E isso gerava estresse, porque tinha de ficar circulando. E, enquanto circulava, atrapalhava o avião que estava indo para Guarulhos. O fluxo melhorou – explica o coronel-aviador Fernando Silva Alves de Camargo, investigador do acidente envolvendo o voo JJ3054.
* Colaborou Paulo Rocha