Durante dois anos, peritos do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) se debruçaram sobre cálculos de dados das caixas-pretas do voo 3054 da TAM, reproduziram em simuladores a situação daquela noite chuvosa de 17 de julho de 2007 na escorregadia pista de Congonhas e analisaram as poucas peças que sobraram do Airbus para identificar as causas da tragédia. No relatório final, 83 recomendações foram feitas a TAM, Airbus e Infraero, que administra o aeroporto paulistano. À frente do Cenipa à época estava o brigadeiro-do-ar Jorge Kersul Filho. Hoje na reserva, o militar avalia o que mudou na aviação brasileira desde o acidente.
O que foi aprendido a partir do acidente?
Aeródromos em centros de grandes conglomerados urbanos têm de ter cuidados especiais, têm de ser mantidos corretamente, de passar por reformas constantes. Essa foi uma frustração que ficou de ensinamento. Entre o Natal e o Ano-Novo que antecedera o acidente, nós, do Cenipa, nos reunimos com todos os que operavam no aeródromo de São Paulo e alertamos para a possibilidade de um desastre quando de chuva forte. Após a reunião, tomamos providências para que o acidente não acontecesse. E realmente não aconteceu (nas circunstâncias que se temia naquele momento). Todas as medidas que implementamos em Congonhas foram efetivas. Quando começou a reforma da pista, ficamos muito satisfeitos porque conseguimos evitar um acidente que víamos de grande possibilidade.
O que haviam estipulado?
Estabelecemos procedimentos para o caso de início de chuva, uma quantidade limite. A movimentação era interrompida, e alguém ia até a pista e media a camada de água em cima do asfalto. Várias vezes interrompemos a operação. Era um paliativo, o que resolveria realmente o problema de acúmulo de água na pista seria uma reforma, que veio a acontecer.
A questão envolvendo o grooving não foi preponderante para o acidente?Quando ocorre um acidente, aparecem os especialistas de plantão. Começam a chutar o que foi a causa. Se você prestar atenção, nunca o Cenipa foi a público dizer que foi isso aqui que aconteceu. Porque não é nossa filosofia. Nessa ocorrência, vários fatores se somaram e culminaram com a ocorrência do evento. Se não tivesse sido numa cidade tão grande, numa pista que fica dentro da cidade, teria provavelmente consequências mínimas como outros dois do mesmo tipo que ocorreram no mundo.
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Se a pista fosse maior, o avião teria parado?
Esse acidente poderia ter acontecido em qualquer pista. Podia ter uma pista de cinco quilômetros, 20 quilômetros, tudo aconteceria como aconteceu. No início, diziam: “A culpa é da pista, a culpa é da pista”. Depois: “A culpa é do reverso, a culpa é do mau tempo”. A gente não procura culpados, a gente procura saber o que aconteceu para evitar que ocorra novamente. A pista, nesse caso, poderia ser maior, e o acidente aconteceria idêntico como aconteceu.
Seria possível, dentro dessa política de não elencar responsáveis, estabelecer graus de responsabilidade?
Não temos esse tipo de graduação. A responsabilidade está ligada a investigação policial. Vai ser usada pelo juiz para estabelecer culpa. A obrigação do Estado, no que diz respeito a investigações de acidentes aeronáuticos com fins de prevenção, deixa claro que não deve ser usada para outro fim que não o da prevenção. Se deixarmos de contar com a colaboração dos envolvidos no transporte aéreo, corremos o risco de não ter o transporte mais seguro do planeta. É graças a isso que um comandante, piloto, fala claramente a um investigador, porque sabe que aquilo não será usado contra ele. A Constituição nos preserva de não produzirmos provas contra nós mesmos. Se isso acabar, ninguém mais vai colaborar com a investigação.
Ficou confirmado que uma das manetes estava em aceleração?
Fizemos o que era possível para termos uma resposta física das posições das manetes. Não conseguimos. Porém, o gravador de dados demonstra que uma das manetes foi deixada na posição idle (ponto morto). Fizemos de tudo para provar fisicamente essa informação, mas não foi possível porque todo o sistema virou um bloco sólido por causa da temperatura. Então, tivemos de levar em consideração o que estava na gravação de dados.
Falha humana ou o computador pode ter registrado errado?
A probabilidade de erro no registro do computador ter acontecido é tão pequena. É mais fácil a gente morrer de um raio. Independentemente disso, o questionamento foi: “Não é um procedimento muito simples para um comandante com muita experiência deixar de fazê-lo?” Sim, é simples, mas temos de levar em consideração que, meses antes, o fabricante modificou o procedimento para parada da aeronave, para uso dos reversores. Essa mudança pode ter levado a tripulação a fazer procedimento diferente do que haviam feito quando pousaram em Porto Alegre.
Em Porto Alegre, as duas manetes foram para baixo?
Exato, em Porto Alegre, o procedimento foi feito conforme novo procedimento estabelecido pelo fabricante. Em São Paulo há diferença. Não tem como a gente afirmar categoricamente. Podemos dizer que o que está registrado é isso. Aí fica: pô, mas não pode ter sido falha do computador, que não registrou isso aí? Pode, mas é ínfima. Pode a tripulação ter feito procedimento diferente? Pode, mas só eles poderiam confirmar isso.
Congonhas tinha no histórico outro acidente, em 1996. O aeroporto deve continuar operando onde funciona?
Essa decisão prefiro não comentar porque não está no meu nível decisório.
Em 2007, o Brasil enfrentava um caos aéreo: outro acidente um ano antes, com o avião da Gol, a revolta dos controladores aéreos. O que mudou de lá para cá?
O controle hoje tem melhores sistemas do que tinha na época, houve contratação de controladores e a formação é melhor. Há novos equipamentos. Tenho certeza de que o controle de tráfego aéreo hoje é melhor do que ontem e é pior do que amanhã. Amanhã ele vai estar melhor, mas não vamos conseguir um sistema infalível. O ser humano está envolvido, e o ser humano não é infalível.
No caso de Congonhas, o senhor acha que o piloto poderia ter arremetido?
Como piloto, você sempre deve considerar a possibilidade de arremetida. Quando vem para o pouso, deve vir pensando que, se um animal entrar na pista, deve arremeter. Se um veículo entrar na pista, é bom que arremeta. Se não está confortável, é bom que arremeta.
Seria possível, no caso do voo da TAM, arremeter, mesmo após aberto o reverso?
Tem de ver o procedimento estabelecido pelo fabricante da aeronave, porque ele treinou isso milhares de vezes. Ele sabe qual é a melhor probabilidade de dano.
Os reversores são um extra?
Todo mundo vai usar sempre, porque é um extra. Aquela pista é suficiente para eu parar, e se usar o reverso, sei que vou parar bem antes. Então, todo mundo usa. É um bônus. Eu paro naquela pista sem reversores, só com os freios.
Como era a pressão por respostas à época?
Fui a Porto Alegre me reunir com os familiares, a pressão era grande e compreensível: aquelas pessoas tinham acabado de perder entes queridos. Todo mundo tentou fazer o seu melhor. Às vezes, a gente não agrada porque não tem a resposta para dar, mas nunca escondemos qualquer resposta. Sempre divulgamos tudo o que tínhamos.
* Colaborou Paulo Rocha