Uma situação que se arrasta por quase duas décadas segue preocupando moradores e empresários do bairro Cinquentenário, em Caxias do Sul. Desde o ano 2000, eles presenciam diariamente a atividade de prostitutas e o consumo de drogas ao ar livre na Rua João Nichele, paralela à ERS-122. Vizinhos também reclamam da sujeira deixada para trás: em toda a extensão da via há garrafas de bebida alcoólica, preservativos usados e papéis higiênicos sujos. Os moradores do Cinquentenário, considerado um bairro de classe média alta, reclamam por não receber retorno do poder público para solucionar de vez a questão.
Na semana passada, uma equipe do Pioneiro esteve no local e constatou que pouco mudou desde a primeira reportagem sobre o assunto, publicada em 2005. O cenário é o mesmo: a movimentação começa cedo, antes das 8h, quando as prostitutas começam a se fixar em alguns pontos. Enquanto elas esperam os clientes nas calçadas, usuários de drogas também chegam e são abastecidos por motociclistas e outros veículos. Por vários momentos, as mulheres se escondem num matagal, onde praticam sexo com os clientes. Em outros, algumas consomem drogas.
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Para Fernanda Nunes, 36 anos, moradora e presidente do bairro Cinquentenário I, incomoda saber que um problema histórico e grave é ignorado. Ela relata que falta uma atuação firme, tanto da polícia quanto de entidades assistenciais.
– Já passou da hora disso ser resolvido. Convivemos com o medo de sair na rua e não saber o que pode acontecer. Tem muita circulação de usuários de drogas e isso nos intimida – relata.
O empresário Jovir Demari, um dos donos da academia Raiar, que fica na Alcides Maia, vizinha à João Nichele, concorda que a situação gera insegurança.
– Já que o problema é tão difícil de ser resolvido, a gente tenta fazer a nossa própria segurança. Por sorte, não fui afetado pela presença das prostitutas e dos usuários de drogas, mas tive de tirar (dinheiro) do bolso para ter alguém sempre de olho nos arredores da academia – revela.
De acordo com o secretário municipal de Segurança Pública e Proteção Social, José Francisco Mallmann, o Cinquentenário é um dos pontos mais sensíveis de Caxias. Porém, ele afirma que ainda é necessário avaliar toda a situação.
– Estamos recebendo denúncias e analisando de que forma podemos atuar na João Nichele. Aos poucos e sem determinar prazos, vamos cuidar da segurança de todas as regiões da cidade. Estamos cientes do problema e iremos, sim, planejar uma solução efetiva – promete.
Falta de assistência e meio de sobrevivência
Marginalizadas e esquecidas. É desta forma que prostitutas e travestis que ocupam a Rua João Nichele afirmam se sentir. Durante conversa com o Pioneiro, uma das mulheres confessa que está ali para sustentar o vício nas drogas. Porém, também afirma que se tivesse mais ajuda, poderia sair dessa vida.
– As assistentes sociais passam aqui raramente e depois nos esquecem. Mas a gente precisa desse trabalho para sobreviver. Ficamos aqui por ser mais escondido, já que não queremos aparecer para quem não quer ver a gente – explica a mulher, que tem 35 anos e há dois utiliza esse ponto para se prostituir.
Por necessidade e não pelo vício nas drogas, outra prostituta também reforça o sentimento de esquecimento. Segundo ela, uma vez a cada três meses, em média, equipes da prefeitura passam para distribuir preservativos. A mulher, inclusive, diz que também se incomoda com a sujeira.
– Esse trabalho é a forma que tenho para me sustentar. Sou uma pessoa normal, tenho contas para pagar, casa para cuidar. Encontrei aqui, há 14 anos, uma forma de conseguir fazer isso. Só que não recebemos qualquer atenção aqui. Se você olhar ao redor, não vai achar nenhuma lixeira. Isso é nossa culpa também? – questiona ela, que tem 50 anos e se desloca três vezes por semana até a João Nichele.
Logo que o ponto passou a ser conhecido, cerca de 30 mulheres e travestis o utilizavam para programas. Hoje, conforme as entrevistadas, o grupo tem entre 10 e 15 pessoas. Muitas teriam desistido por conta de assaltos cometidos pelas próprias colegas. Outras morreram em função de alguma doença ou por algum outro problema de saúde. Questionadas sobre as reclamações dos vizinhos, elas se defendem.
– Nunca tive a intenção de incomodar os vizinhos. Utilizamos esse espaço por ser o mais escondido possível. Entendo as pessoas que não nos querem aqui, mas não estamos na porta de ninguém. Fazemos o nosso trabalho e vamos embora – diz uma das prostitutas.
O coordenador do Consultório de Rua, serviço oferecido pela Secretaria da Saúde, explica que a João Nichele está entre os pontos mapeados para receber atendimento. Porém, afirma houve um encolhimento no fluxo de trabalho por contenção de despesas.
– Estamos circulando por ali de 15 em 15 dias. Agora, atuamos apenas nas terças e quintas-feiras e muitas vezes quando vamos fazer a abordagem, não encontramos todas lá – afirma Daniel Araújo dos Santos.