Na casa de dois andares, que transmite a sensação de aconchego ao visitante pela decoração elegante, apenas um cômodo tem servido de refúgio para tornar menos lancinante a dor da empresária Tatiane Faleiro, 38 anos, e do engenheiro Ronei Wilson Jurkfitz Faleiro, 48: o quarto do único filho, Ronei Wilson Jurkfitz Faleiro Júnior, 17 anos, assassinado de maneira brutal na madrugada do sábado, em Charqueadas.
- Cada lugarzinho aqui lembra um pouco dele, mas o quarto tem sido o único canto em que nós temos conseguido sofrer um pouco menos - disse o pai do adolescente na tarde de ontem, ao conversar com a reportagem de Zero Hora por cerca de uma hora.
De cabeça baixa, com a voz calma e o olhar perdido, a imagem do pai é a de um homem que perdeu o sentido de toda uma vida, organizada em torno do adolescente de futuro promissor. Ronei relatou os momentos de terror em que viu o filho ser agredido e sangrar até a morte, e disse que tenta agora se perdoar por não ter conseguido protegê-lo. Classificou o crime como reflexo do fim dos valores humanos em sociedade e fez um apelo para que a Justiça não deixe o crime bárbaro impune.
Oito adultos estão presos preventivamente por suspeita de participação no assassinato. Nesta quarta-feira, foi decretada a internação de dois adolescentes envolvidos - outros quatro ganharam o direito de responder em liberdade. O Ministério Público vai recorrer.
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Leia, a seguir, a entrevista na íntegra.
Desde quando a sua família vive em Charqueadas?
Nasci em São Jerônimo, mas vim para cá (Charqueadas) com uma semana (de vida) e nunca saí. Vim morar nesse endereço quando ele (Júnior) nasceu. A questão maior era ir morar na Capital, porque eu já trabalhava lá e viajava todos os dias, ou morar aqui. Por opção até em termos de segurança e tudo mais, resolvemos construir aqui nesse local e ficar residindo aqui e viajando para Porto Alegre todos os dias para trabalhar, que é o que a gente faz, eu e minha esposa.
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Como era a relação dele com os colegas na escola e os amigos?
Não vou chamar de líder, mas ele sempre gostou de estar envolvido com as atividades. Acredito que sempre foi um bom colega pela características dele, era muito sociável, nunca foi de fazer discriminações, então se relacionava com todos os colegas. Uma das principais características, e algo que, às vezes, brigava muito com ele, era de quando assumia uma posição de realizar alguma coisa envolvendo a escola. Ia ao limite para aquilo. Sempre buscando algo diferente.
O que ele queria fazer quando se formasse?
Ele sempre dizia "vou para área de exatas". Ele falava em fazer Física, porque era influenciado por alguns professores. Estava fazendo cursinho à noite. (Faria) provavelmente uma Engenharia, não sei especificamente em que área.
A festa foi organizada para a formatura?
Eles chamaram de "A noite no México". Tinha como função angariar fundos para os eventos da formatura. Há dois anos começaram algumas ações, queriam fazer uma viagem de formatura e um evento diferenciado. Para isso, eles sabiam que precisavam de um pouco mais de dinheiro. Aí bolaram essa questão da festa. Ele era um dos organizadores.
Ele costumava sair?
Ia a alguns aniversário, festas mais fechadas. E festas abertas era provavelmente a quarta ou quinta que estava indo. Mas durante essas quatro ou cinco que ele foi sempre tive o cuidado de levar ele até a porta, monitorar por telefone, Whatsapp, mensagens a cada hora para saber: "E aí, filho, onde é que tu tá, como é que tá? Não saí aí, te cuida, daqui a meia hora o pai tá aí". Nas primeiras, inclusive, tive o cuidado de tirar o meu carro e parar em um estacionamento para ficar cuidando o movimento, e ficar mais perto para tentar alguma coisa se algo ocorresse.
E como foi naquela noite?
Nessa, especificamente, além de acompanhar a cada período por mensagem, tinha combinado de buscá-lo às 5h. Ele não ia e não voltava sozinho ou com amigo em hipótese alguma. Nesse dia, estacionei o meu carro no estacionamento do posto na frente do clube e liguei (para o celular do filho) lá para dentro. Perguntei como estava. Ele disse que já estava encerrando, mas que tinham de fazer um acerto do dinheiro. Isso ia levar mais ou menos 15 minutos. Passado esses 15 minutos eu liguei de novo e disse "vamos agora?". Ele disse "vamos, mas tu vai ter que me dar uma ajuda". Perguntei o que houve, e ele disse "tu dá uma carona para um casal de amigos, que deu um problema com eles?". Disse, "cara, não tem problema nenhum". Ele falou, "tu levas até lá em casa". Disse que não, que ia dar carona até a casa deles. Ele disse: "então pode ser, estaciona aqui na frente". "Tá, não sai que te pego aí na porta". Entrei na porta e eles já estavam me esperando. Disse, "Vamos embora, deixei o carro com as portas abertas, vocês entrem que a gente saí". Quando caminhei três ou quatro passos descendo os primeiros degraus da escada do clube veio um tumulto para cima de mim e deles.
O que houve?
Eles entraram dentro do carro. Ele foi um dos primeiros, acredito eu. Essas pessoas começaram a agredir todos, eu e os três dentro do carro. Quando tentava tirar um de uma porta e conseguia fechar, eles invadiam a outra, e não conseguia de forma alguma entrar no carro e arrancar. Foi um momento em que a situação ficou muito crítica, tinha muitas pessoas jogando garrafa e dando pontapés. Em resumo, quem caísse ali ia ficar morto, pelo nível de violência e do que estavam usando para nos atacar. Queria sair com o carro com aquelas crianças. Eles deram uns passos para trás e consegui entrar na porta do motorista. Quando liguei o carro, estavam de novo com as portas do carro abertas, mas consegui arrancar e eles soltaram as portas. Nesse meio tempo, olho para trás e meu filho disse "pai, acho que estou com a testa cortada". Disse: "Vou levar vocês direto para o hospital". E dali, infelizmente, ele sangrou até morrer.
Qual sentimento em uma hora dessas?
É aí que refiro que a gente está vivendo em um mundo sem condições. Não tinha uma ambulância. Sei que as atendentes do hospital tentaram prestar socorro, mas não tinha sangue. O resumo é que foi uma hora e meia de sofrimento no hospital, ele sangrando. Tentaram costurar. Deslocamos para Porto Alegre, os médicos no Hospital Santo Antônio, avisados, esperaram na porta, mas a informação que eu tenho é que quando nós descemos a ponte do Guaíba, o coração já tinha parado.
O senhor reconheceria quem bateu em seu filho e no senhor?
Tem menores e maiores envolvidos, se me pedir para que eu descreva qualquer um deles, nesse momento, vou ter dificuldade, porque foi uma ação muito rápida. A minha intenção sempre foi de sair dali o quanto antes. De novo: se eu não tivesse conseguido sair dali, não só ele teria ficado como vítima, mas também eu e as duas crianças. O que me deixa um remorso muito grande é que ele, na intenção de ajudar amigos, foi vitimado, e o motivo é inexplicável. Não consigo enxergar entre jovens uma desavença, principalmente dele, que não tinha namorada, ao menos que convivesse conosco, talvez namorada de internet. Não era um menino que fosse agressivo na rua ou tivesse frequentemente trazendo qualquer tipo de problema. Não consigo enxergar um motivo para vinte pessoas atacarem um pai de família, o seu filho e duas crianças.
Há notícia de que eles foram uma espécie de gangue.
Não vou colocar como uma gangue porque são filhos de amigos meus, ou ex-amigos meus. Quando tu diz que é uma gangue, tu está chamando de bandido e assassino. Infelizmente, o desfecho foi esse. Se foi articulado antes, como a gente sabe que no município existiam ações deles, não tem explicação. Qualquer motivo seria o suficiente para eles terem feito o que fizeram. Qualquer pessoa em sã consciência, vendo um pai pedindo para parar como eu pedi e implorei, teria o mínimo de consideração. Eu fui professor nessa mesma escola que meu filho estudou, provavelmente tenha sido professor de um deles. E na preocupação de tentar fazer com que eles fossem cidadãos melhores, o presente que eu recebi da sociedade foi esse.
Alguns deles moram perto da sua casa?
Tu vai achar a história mais escabrosa ainda, porque tem envolvidos que conviveram anos com meu filho. Tem crianças que se criaram na frente da minha casa. Tem vizinhos que moram a meia quadra daqui, não precisa mudar nem o endereço, muda só o número. As pessoas estão perto. Como elas se organizaram e o que motiva, eu não consigo dizer. O município é pequeno, não é um município que poderia ter violência, ele sofre o que todos os demais municípios do Brasil sofrem, com tráfico de drogas, com adolescentes sem perspectiva. Mas eu venho de uma família pobre, meu pai trabalhou em granja, cozinhou para plantadores, lavou roupa em fazenda. No final da vida dele conseguiu nos dar um pouco mais, mas nunca, em momento algum, transmitiu um valor diferente. Tenho certeza que o Júnior, onde estiver, sempre teve a preocupação de desenvolver algo melhor, não pra ele, para a sociedade. Um coisa que sempre nos marcou foi que quando a minha esposa, que tem escritórios e uma loja, por algumas dificuldades dizia que ia fechar, ele dizia, não mãe, espera, vou fazer 18 anos e te ajudar, tem pessoas que são teus empregados, essas famílias dependem disso. O sentimento dele era diferente, e infelizmente acabou com 17 anos. O valor humano sumiu, não existe mais.
Como será daqui para frente?
Infelizmente é a dor que vou ter de carregar para o resto da minha vida. Eu não consegui proteger o meu filho. O que deveria ser a missão mínima de um pai. Levar e trazer um filho com saúde para sua casa e deixar que aquilo que está escrito por Deus, pelo destino, acontecesse de forma natural, não assim. Hoje nós somos punidos de forma muito grave se atravessamos uma linha contínua. E eu já estou sabendo que para quatro dos menores envolvidos identificados, o juiz já deu a liberdade de responder fora do sistema. Então, que Justiça é essa?
Que lembrança o senhor vai guardar do Júnior?
Ele tinha 17 anos. Todos os dias, ele passava no nosso quarto e dizia: dá o ladinho quente da cama, deixa eu me esquentar com vocês. Foram 17 anos em que ele não saiu da nossa volta. Conviveu seus 17 anos de uma forma extremamente carinhosa, amorosa e respeitosa. Eu vou levar pro resto da minha vida o que ele pode me ensinar em 17 anos, e talvez eu não consiga aprender no restante da minha vida nada mais importante do que ele me ensinou nesse tempo. A minha atividade exigia que eu viajasse. E quando eu viajava, ligava pra casa e ele dizia: pai, não te preocupa, eu tô aqui com a mãe. Eu agora eu perdi o meu companheiro. Eu perdi o meu guardião.