Há algo estranho no uso da expressão "toque de recolher" nas reportagens da TV americana sobre os incidentes em Baltimore. A cidade fica a 63 quilômetros de Washington, D.C. É pouco mais do que a distância entre Porto Alegre e Charqueadas. A Baltimore de Obama não poderia ser mais distinta do Cairo de Hosni Mubarak. O toque de recolher deixou ambas um pouco mais próximas.
É claro que, no caso de Baltimore, trata-se de medida excepcional e temporária. Em 2013, após o atentado à Maratona de Boston, a cidade de Massachusetts ficou sob toque de recolher por quatro dias.
Funeral de jovem negro é seguido por protestos e confrontos em Baltimore
A antropóloga brasileira Rosana Pinheiro Machado, que cumpria temporada de estudos em Harvard, teve a sensação de que "a qualquer momento podia ter um tiro". Na época, havia bons motivos para a medida: dois rapazes com bombas nas mochilas. Desta vez - bem, há todos aqueles tipos jogando pedras na polícia e saqueando lojas.
Os escrevinhadores de discursos de Obama (e dos que vieram antes dele, ainda que menos inspirados) fizeram um bom trabalho. Graças a eles, esquecemos o quanto a violência extrema e sem amarras está na raiz da formação dos Estados Unidos. A anexação de metade da superfície do México, das Filipinas, do Havaí e de Porto Rico - tudo isso tem tanta importância quanto um toque de recolher. Simon Schama, historiador britânico insuspeito de ser antiamericano, foi definitivo: "Na época em que a América Hispânica se tornou a Anglo-América, os mexicanos não cruzavam as fronteiras: as fronteiras é que os cruzavam".
Com Baltimore sob toque de recolher, Obama questiona táticas policiais
Na metade do século 19, havia cerca de 40 mil chineses empregados na construção de ferrovias no oeste americano. Boa parte deles estava presa por meio de dívidas a seus contratantes, em condições de semiescravidão. No Sul e no Leste, havia escravos de fato e de direito. Em 1861, em legítima defesa da propriedade de cativos, 13 Estados sulistas criaram o que, na prática, era outro país: os Estados Unidos Confederados. Trazê-los de volta ao seio generoso da União custou quatro anos de guerra e mais de 600 mil mortos.
O Estado de Maryland, onde fica Baltimore, era escravista, mas não se uniu nem à União nem aos Confederados. As primeiras mortes da guerra ocorreram na cidade, em 1861, em distúrbios de rua. Quando o Sul se rendeu, em 1865, veteranos do Sul deixaram a América. Mas a América não os deixou: alguns deram com os costados no Brasil e, no interior de São Paulo, fundaram os municípios de Americana e Santa Bárbara do Oeste. Lá, ainda hoje tremula a bandeira confederada.
Leia as últimas notícias de Mundo
Leia todas as colunas de Luiz Antônio Araujo
Olhar Global
Luiz Antônio Araujo: os negros e os outros
Leia a coluna Olhar Global desta quinta-feira
Luiz Antônio Araujo
Enviar emailGZH faz parte do The Trust Project