Chovia sem parar desde sexta-feira. Maria Figliero tinha recém tirado a mesa do almoço, quando o marido, Lídio, anunciou o passeio:
- Vamos lá ver a ponte que caiu!
- Mas e a louça? - preocupou-se a dona de casa.
- Lava na volta - retrucou o serralheiro.
- E tu não tens que trabalhar? - apelou Maria.
- Vamos rapidinho e voltamos - Lídio encerrou o assunto.
Maria sabia como era difícil domar a curiosidade do marido. Ela diz que Lídio devia ter sido repórter, porque sempre gostou de acompanhar os acontecimentos que alteram a rotina da cidade de Mata, na região central do Estado. O jeito foi colocar Tatiana, 11 anos, Giovani, oito, e André, quatro, no banco traseiro do Fusca 68. Maria seguiu como copiloto do marido pela BR-287 em direção a Santa Maria. Era uma terça-feira, 8 de maio de 1984.
A ponte que tinha desabado com a força da enxurrada era como uma casa de veraneio para os Figliero. Eles usavam a cabeceira como abrigo para acampar e pescar na beira do Rio Toropi. Entre Mata e São Pedro do Sul, Maria deu o comando:
- Freeeeia que é um buraco!
Passou pela cabeça de Lídio jogar o carro contra a mureta, dar um cavalinho de pau ou então acelerar e, como em um filme de ação, chegar "voando" até o outro lado da fenda. Acabou fazendo o que Maria disse. Pisou fundo no freio, o Fusca deslizou por cerca de 30 metros na pista molhada até ficar suspenso, apenas com as duas rodas traseiras sobre o que restava do asfalto.
Qualquer movimento faria o carro despencar de uma altura de 80 metros e mergulhar no mar revolto em que a várzea do Rio Toropi tinha se transformado naquela tarde.
Ninguém respirou. Ninguém falou. Lídio saiu lentamente, usou as canaletas do Fusca para se equilibrar e foi até o capô traseiro. Fincou o pé esquerdo no para-choque e jogou o peso do corpo para frente, tentando evitar que o carro pendesse para o desfiladeiro.
Lá dentro, Maria fixou os olhos na medalhinha de Santo Antônio presa no retrovisor interno, orientou os filhos a saírem, um por um, devagar, e rezou.
Tatiana, a mais velha, foi a primeira. Olhava o asfalto e chorava. Giovani, o do meio, ficou em estado de choque. André mal entendia o que estava acontecendo e correu para o colo da mãe. Maria acendeu um cigarro para se acalmar. Lídio não mudava de posição. Com a família a salvo, estava decidido a não deixar o carro recém-reformado ser levado pela correnteza.
O helicóptero da Força Aérea Brasileira que sobrevoava a região, com técnicos enviados de Brasília para analisar os estragos nas rodovias e ferrovias, pousou na estrada. Uma equipe de televisão chegou ao local de barco. Homens do Exército e repórteres ajudaram a puxar o Fusca de volta à estrada. Lídio manobrou, a família embarcou e voltou para casa. Ilesa. Foi "só" um susto.
Hoje com os filhos adultos e oito netos, os Figliero se orgulham da foto pendurada na parede da sala e repetem a história daquele dia a cada visita que recebem. Lídio vendeu o Fusca cinco anos depois, quando trocou Mata por Santa Maria. Arrependido, até pensa em comprá-lo de volta.
- Devia ter guardado como relíquia! - lamenta Lídio.
Relíquia mesmo, para Maria, é a família ter vivido para contar.
Assista a vídeo sobre a foto emblemática:
Submersos e às escuras
Enquanto a família Figliero pagava o preço da curiosidade nas margens da BR-287, em Jaguari, cidade vizinha, cerca de 1,7 mil pessoas expulsas de casa pelo avanço do Rio Jaguari na noite de domingo retornavam para ver o estrago do aguaceiro em suas propriedades. Não tiveram a mesma sorte da família de Mata. Sequer a louça suja tinha restado.
Adepto de esportes náuticos, Paulo Roberto Marcon, o Beto, aproveitava a tarde de domingo no clube de caça e pesca quando ouviu falar que a correnteza tinha rompido a barragem, no interior do município. Pegou o barco a motor que usava para pescar nas folgas e saiu em direção à Vila Calegaro para ajudar no resgate de ribeirinhos que subiam em carros, patrolas e até em árvores para se proteger. Não tem a conta de quantos salvou. Sabe que perdeu um. João Alício Fragoso gritou por socorro, mas acabou preso no forro da casa, tentando escapar pelo telhado, depois coberto pela água.
Os gritos eram o único guia para Beto. Às 23h, a cidade ficou sem luz e até a rádio local, pela qual Sílvio Bertoncello transmitia alertas à população, saiu do ar. O transmissor ficou submerso. O irmão dele, Orestes Bertoncello, trocou o microfone pela câmera fotográfica. Perdeu os primeiros cliques por não ter se dado conta de que o filme estava travado, mas garantiu o registro histórico da água passando por cima da ponte de 15 metros de altura no centro da cidade. Nunca houve uma enchente igual.
Família dividida e assustada
Outra família viu as imagens aéreas da cidade inundada no telejornal da noite. Almira Ferreira, a filha mais velha, Zaida, e o caçula, Tarciso, estavam com ela, que cuidava da mãe doente em São Francisco de Assis.
Mais seis filhos tinham ficado em casa, acompanhados por outra irmã maior, Zair. Todos escaparam, refugiando-se no prédio da prefeitura ainda em construção, na parte mais alta da cidade.
Veja galeria de fotos da enchente:
Como todas as pontes no caminho para Jaguari cederam à força da enxurrada, Almira só pôde reencontrar os filhos dias depois, quando o trânsito de veículos foi liberado sobre a ponte ferroviária, a única que resistiu. O Exército montou barracas para os flagelados em uma área seca, próxima à região afetada. Foi em uma dessas cabanas que Almira recomeçou a vida com os nove filhos, com idades entre cinco e 21 anos.
- Fazíamos canaletas ao redor da barraca, para não entrar água - lembra Tarciso, um dos filhos.
O acampamento durou mais de dois meses. No dia 18 de julho, cerca de 600 pessoas se uniram em mutirão para começar a construir a Vila Consolata. Com chapas de compensado e telhas doadas pela Defesa Civil, 120 casebres foram erguidos num único dia.
Trinta anos depois, a primeira-dama da época, Aida Fiorin, 69 anos, cumprimenta pelo nome cada um dos moradores enquanto percorre a rua principal do bairro.
- Ainda hoje sou chamada para festas de aniversário e até para ser madrinha dos filhos deles - conta, comemorando a mudança de vida que a tragédia de 1984 proporcionou a muitas famílias, graças aos investimentos no novo bairro.
Tarciso, o menino que cavava valetas ao redor da barraca, agora é funcionário da Secretaria de Assistência Social e se orgulha de entregar a escritura permanente de terrenos aos assentados, projeto que deve ser concluído este ano.
Pesquisador tenta projetar ciclo de inundações
Para o mestrando em Geografia Bruno Prina, 23 anos, histórias como a da enchente de 1984 são fonte de pesquisa. Natural de Jaguari, ele reúne os registros de chuvaradas ao longo das décadas para criar um inventário que permita estimar o tempo de volta de eventos extremos, ou seja, projetar a frequência de grandes inundações.
Paralelamente, quer mapear áreas de risco. Cruzando os dados, o jovem pretende gerar um aplicativo georreferenciado que poderá dar suporte a políticas públicas.
Questionado pela banca na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) a respeito da relevância de sua pesquisa, já que Jaguari não é comumente afetada por grandes inundações, ele respondeu com uma citação do professor Carlos Tucci: "Quando a frequência das inundações é baixa, a população ganha confiança e despreza o risco, aumentando significativamente o investimento e a densificação nas áreas inundáveis. Nesta situação as enchentes assumem características catastróficas".
De acordo com o geógrafo Cássio Arthur Wollmann, professor da UFSM, o caso de 1984 foi um evento extremo de precipitação. Na estação meteorológica da universidade choveu 144mm entre os dias 5 e 9 de maio, o que corresponde à média de todo o mês.
- Não tínhamos algo maior, como El Niño, ajudando a intensificar a chuva. A impressão que tenho é que tivemos algum bloqueio atmosférico, com frentes frias paradas sobre a região central do Estado, e a umidade da Amazônia bastante consistente chegando ao Rio Grande do Sul. Foi algo pontual - explica o meteorologista Celso Oliveira, da Somar Meteorologia.