O centroavante do Inter escutava iê, iê, iê de Roberto Carlos e Renato & Seus Blue Caps numa vitrola portátil de vinil, curtia reuniões dançantes em calças boca de sino e gola rolê, bebia Grapette como água, e recém havia sofrido cascudos dos colegas de concentração pelo aniversário de 19 anos em 3 de abril de 1969, uma quinta-feira. No domingo, dia 6, ele, Claudiomiro Estrais Ferreira, caçula do time, que tomava dois ônibus por dia até Canoas e já atendia pelo apelido de Bigorna, marcou o primeiro gol dos 45 anos do Beira-Rio.
O guri atarracado em 1m71cm marcou sua carreira diante do poderoso Benfica, de Lisboa, até então de dois títulos e cinco finais da Taça dos Campeões da Europa, base da seleção de Portugal que derrotara o Brasil na Copa de 1966. Mais: era o supertime do centroavante Eusébio (1942-2014), o Pantera Negra, à época rival de Pelé na briga pelo título de melhor jogador do mundo. Tinha o cabelo carapinha ralo - como o de Claudiomiro.
Poucos esquadrões metiam medo nos anos 1950 e 1960 como os Águias Encarnadas, que já haviam aplicado cinco no Real Madrid. Mas não eram eles a maior preocupação da turma da vitrola, que mal alcançara a fase adulta e nem conhecia o adversário além das proezas de Eusébio.
Três dias antes do jogo de abertura do Beira-Rio, o grupo concentrou numa pousada do Morro do Sabiá. Isolados da torcida e com única companhia dos mosquitos e a vista do Guaíba, Tovar, Valdomiro, Dorinho, Bráulio, Sérgio Ferreira Galocha, com média de 21 anos, consideravam-se tios de Claudiomiro e faziam com ele todo o bullying possível. Gainete, o casmurro, Laurício, Scala, Luís Carlos e Sadi eram os mais velhos de um time quase juvenil.
- Sabia que o Benfica era o grande time da Europa, sim. Sabia de Eusébio, Torres, Simões, mas era tudo. A gente era muito novo - diz Claudiomiro.
- A gente mal tinha ideia da envergadura deles. Queríamos jogar, era nosso prazer - conta Dorinho.
Às 6h do domingo festivo, uma alvorada de fogos tomou a cidade e despertou os jogadores entre os mosquitos do Morro do Sabiá, e a adrenalina da tarde se liberou antes mesmo do café da manhã. O bife e o purê do meio-dia custaram a descer. Início da tarde, a delegação chegou ao Beira-Rio e encontrou o estádio em convulsão. Da janela do refeitório, Bráulio se atreveu a espiar:
- "O que é isso?", exclamei. Estava estarrecido diante daquela multidão, aquela imensidão, tudo era novo, e o nível de estresse foi às alturas.
Daltro Menezes, o técnico do Inter, de fala pausada, mal conseguia dar preleção. De tão nervoso, apenas dizia "Vocês sabem quem é o Benfica, não?" - e os mais novos tremiam, as mãos tremiam, os músculos da coxa tremiam no aquecimento. Nem o massagista Antenor Moura, de avental branco e mãos milagrosas, reduzia a tensão. O time se encaminhou ao campo, uma eternidade, pareceu.
- Quando cheguei ao gramado, não tive coragem de olhar as arquibancadas enlouquecidas. Só aos poucos ergui os olhos, havia um assombro, um temor com o barulho e a multidão - conta Bráulio.
E havia a solenidade. Os dois times perfilados, e os monstros do Benfica ali do lado. A banda tocando A banda, de Chico Buarque, a homenagem a Bodinho, e o Benfica ao lado, entediado.
Nos primeiros minutos de jogo, a bola passou por baixo do pé de Tovar, que exclamou:
- Estou todo borrado!
O time inteiro começou assim, mas logo reagiu. Enquanto o Benfica desfilava, o Inter mordia, e isso surpreendeu, até o lance em que Valdomiro inverteu um cruzamento ao ponta esquerda Gilson Porto. Que tentou bater de primeira, como fazia, e acertou de tornozelo um cruzamento perfeito ao centro da área, onde estava Claudiomiro.
Bráulio vinha atrás e pensou: "Se ele (Claudiomiro) errar, eu vou fazer". Mas o centroavante, sem pular, torneou de cabeça na goleira do relógio. Ficou sem reação José Henrique, goleiro do Benfica na disputa do título mundial com o Santos, ídolo no Estádio da Luz nos anos 60 e 70. Eusébio empatou, e Gilson Porto garantiu o 2 a 1, de falta.
Engrandecido pela fama do gol, Bigorna renovou contrato. Comprou um Dodge vermelho com estofamento preto. Estacionava atrás da carroça do pai, em Canoas.
Claudiomiro completou 64 anos em 3 de abril, quinta-feira, e, agora, 45 anos depois, retorna ao Beira-Rio como protagonista da reinauguração. Com cinco netos de um casal de filhos, o bigode amarelado pelo cigarro e uma perna combalida pela artrose, herança dos tratamentos precários dos anos 1970, Claudiomiro volta a ser estrela, como nos tempos do iê, iê, iê.
Em especial, veja o gol de Claudiomiro na inauguração do Beira-Rio em 3D