Raros são os filmes que, ao mesmo tempo, evocam a atmosfera romântica dos clássicos e emanam uma sensação de frescor própria do universo contemporâneo. Está nessa dualidade o estranho encanto de Tabu, que estreia nesta sexta-feira em Porto Alegre.
Longa que consolida o português Miguel Gomes (dos ótimos A Cara que Mereces e Aquele Querido Mês de Agosto) como um dos principais cineastas da atualidade, Tabu homenageia desde o título (e do nome da protagonista, Aurora) o alemão F.W. Murnau. Começa com um prólogo sobre um explorador que vaga pelo continente africano e decide jogar-se aos crocodilos, buscando aplacar a dor da perda da amada. A noite se seguiu ao suicídio, diz o narrador, "como outras mil noites se seguirão", vê-se a lua e, depois, um crocodilo repousando assombrado "pela imagem de uma mulher de outros tempos que um misterioso pacto uniu ao animal e que a morte não poderá jamais quebrar".
Da fábula que referencia as histórias de Sherazade (a narradora de As Mil e uma Noites) à crônica urbana: a primeira metade de Tabu, intitulada "Paraíso Perdido", narra um painel de vidas desperdiçadas na metrópole (no caso, a Lisboa atual). A narrativa do cotidiano de Aurora (Laura Soveral), sua vizinha Pilar (Teresa Madruga) e sua empregada Santa (Isabel Cardoso) aborda a decadência com ironia ao aspecto kitsch da sociedade a la Resnais, com a diferença fundamental de ser rodado todo em preto e branco.
Até no formato quadrado da tela Tabu lembra o cinema mudo de Murnau. Sua segunda parte, "Paraíso", volta à década de 1960, em Moçambique. Ventura (Henrique Espírito Santo), que surgira ao fim da metade inicial, conta a história de amor proibido que ele e Aurora vivenciaram na juventude - e que foi a ruína da mulher. Ambos são interpretados por Ana Moreira e Carloto Cotta. Há ainda a figura do marido traído da protagonista, vivido pelo catarinense Ivo Müller (trata-se de uma coprodução com o Brasil).
A ideia de associar o paraíso à África selvagem e o paraíso perdido à metrópole do século 21 escancara o pessimismo de Gomes. Mas o que Tabu tem de contundência política (a reflexão sobre colonialismo é apenas uma porta de entrada do filme) também tem de apelo à emoção. Sua segunda metade é arrebatadora: explora a construção fragmentária da memória (não há diálogos, apenas imagens e uma narração com alta carga poética) para recuperar a aura mágica das histórias de paixão e aventura de tempos idos. Volta a uma época de inocência - para falar da perda da inocência.
Dado que essa perda está associada ao sexo, trata-se de um princípio bíblico - o mesmo de Paraíso Perdido, que John Milton escreveu no século 17. É na capacidade de adaptar esse tipo de referência remota ao contexto contemporâneo que Tabu se constitui como obra-prima de seu tempo.
Tabu
De Miguel Gomes. Com Ana Moreira, Carloto Cotta, Ivo Müller, Teresa Madruga, Laura Soveral, Henrique Espírito Santo e Isabel Muñoz Cardoso.
Drama, Portugal/Brasil/Alemanha/França, 2012. Duração: 118 minutos. Classificação: 14 anos.
Estreia hoje no Espaço Itaú 3, em Porto Alegre.
Cotação: 5 estrelas.