Sete anos depois de apresentar Regurgitofagia - em que as reações da plateia geravam descargas elétricas no corpo do ator no palco - em concorridas sessões na Capital, Michel Melamed está de volta com um trabalho singular em seu repertório.
É a primeira produção que praticamente não conta com texto, diferentemente da verborragia que caracterizou a "trilogia brasileira" composta por Regurgitofagia (2004), Dinheiro Grátis (2006) e Homemúsica (2007).
Mas não apenas a trilogia era brasileira: as desventuras do país são um tema crônico nas produções do ator, diretor, autor e - se a palavra ainda conserva eficácia - provocador carioca. Adeus à Carne, que será apresentado no sábado, às 21h, e no domingo, às 18h, no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº, fone 51 3227-5100), na programação do 7º Festival Palco Giratório Sesc/POA, é estruturado como um desfile de escola de samba. Só que a Sapucaí de Melamed está distante da euforia do espetáculo televisivo.
- Começou com a ideia de que a cena contemporânea poderia sambar. Em algum momento, comecei a achar que havia um tráfego pequeno entre o teatro e o Carnaval, excetuando o Zé Celso e o Teatro Oficina. Existe uma troca muito vigorosa do cinema e da música com o Carnaval - compara o artista em entrevista por telefone, do Rio.
Confessando-se "um pouco saturado das palavras", ele acredita que a quase ausência de textos na peça abre espaço para uma profusão de significados no espírito artaudiano de que cada elemento em cena - da luz à movimentação dos atores - constitui um discurso próprio. Aí entra o papel do público na interpretação.
- Não acho que haja ausência de texto. É que ele é criado por meio da produção da subjetividade e da reflexão de quem assiste. A dramaturgia acontece de diversas maneiras. Não é um espetáculo textocêntrico. Existe uma dramaturgia do movimento, da cena.
Combinando linguagens como performance, música e teatro, o antissamba-enredo de Adeus à Carne trata das "mazelas do país". Depois apresentar o espetáculo SeeWatchLook nas ruas de Nova York, em 2011, confundindo os passantes sobre o que é encenação e o que é cotidiano urbano, Melamed voltou ao país com a convicção de que é possível "extrair poesia dessa miséria toda".
- São situações tão limítrofes que você pensa que é impossível ver poesia em determinadas situações que vão da família Sarney aos Demóstenes, às máfias infiltradas na saúde, às crianças nas ruas. Mas minha conclusão foi o contrário: o país está crescendo e se desenvolvendo. Por tudo isso, a realidade tem que ser inventada. É não deixar o olhar adormecer de cansaço.
Melamed samba, mas não tira o pé do chão.
O papel do teatro
"Qual é a especificidade do teatro? Tem coisas que apenas ele pode fazer. A partir desse momento, passa a ser, na minha perspectiva, até um dever utilizá-lo como espaço único para determinados assuntos que não podem ser colocados em outros lugares. Penso no teatro na plenitude, como espaço de transgressão, do livre pensar. Esse é o teatro que me interessa."
Um provocador?
"Eu acabo parando nesse lugar de provocação menos porque seja um anseio e mais pelo pensamento. Às vezes, você tenta resumir o pensamento, e ele acaba virando só uma provocação, aí você acaba sendo mal interpretado. O desejo é de criar pororoca, faísca, claro que é, mas a partir de ideias, de pensamentos, de olhares sobre a vida."
Outras linguagens
"Temos quantos séculos de linguagem linear? Não tenho o juízo de valor de que essa linguagem seja pior do que outra, mas existem muitas linguagens, que são maneiras de olhar o mundo, e é mais rico ter muitas maneiras do que apenas uma. A não linearidade é a coisa mais nova neste momento. É como a internet funciona, todo mundo lida com isso."
O Rio continua lindo?
"Qual foi a última vez em que ele esteve lindo? Eu não tenho essa visão. O Rio é bonito, mas tem muitas mazelas. É uma cidade com muitos problemas, é foda. Tem gente talentosa produzindo muita coisa, mas as condições são extremamente adversas para todo mundo. É uma cidade totalmente centrada em uma ilha, que é a Zona Sul."