Minha tia Jurema viveu 32.850 entardeceres. No último deles, talvez pressentindo que se apagaria tal qual uma vela, como poeticamente minha mãe narrou a morte da irmã, fez um pedido comovente.
– Quero vestir a camisa do Xavante.
Assim, trajada de rubro-negro numa tarde ensolarada de fevereiro, encerrou a viagem de 90 anos. Tia Jurema cuidou de mim quando bebê, o que me conferiu a honraria de ser tratado como filho. A camisa dela me foi dada de presente e ocupa lugar de destaque na minha coleção de mais de 30 peças. Ainda vou emoldurá-la.
Por que pensei na Tia Jurema depois de ver o Bento Freitas transbordando nos dois últimos jogos pela Série B, devolvido que foi à sua gente? Ora, porque o patrimônio material acumulado por minha tia é inversamente proporcional à sua riqueza afetiva. Muitos de nós, xavantes, viemos desta rotina de contar dinheiro.
Cresci ouvindo histórias de pessoas que caminhavam a semana inteira, debaixo do céu cinza de Pelotas, para economizar na passagem de ônibus e assim pagar o ingresso do jogo no domingo. Pela lógica dominante desde nosso acesso à Série B, seria pouco sacrifício. A caminhada precisaria levar meses.
Trata-se de uma maldade, para não dizer transfiguração da alma do Brasil, lotear nossa cancha entre aqueles que podem se dar ao luxo de se associar ao clube.
Os ingressos a R$ 60 fizeram no nosso estádio, que já foi o mais humano do mundo, um mero corredor para o vento que sopra do Laranjal. A Baixada vazia é como a Praça Coronel Pedro Osório sem a Fonte das Nereidas. É uma violência sensorial.
A ameaça de rebaixamento fez a direção do clube se lembrar desta reserva de amor negligenciada. Livre da exclusão econômica, a xavantada de raiz voltou com apetite. Os ingressos se esgotaram 24 horas antes das peleias contra o Paraná e o ABC. Vencemos as duas. A torcida do Brasil não é plateia, faz parte do espetáculo.
Rogo à direção que reflita sobre a política de ingressos para 2018. Sou sócio e abro mão dos benefícios gourmet oferecidos. Quero nosso estádio acarpetado da nossa gente. Até para que a honra de morrer vestindo a camisa do Xavante, como fez minha amada Tia Jurema, não seja condicionada pela conta bancária.