Há 10 anos, seria improvável prever que Miguel Ángel Ramírez estaria na beira do gramado do Beira-Rio para comandar o Inter na decisão do Campeonato Gaúcho de 2021. A cena que o Rio Grande do Sul verá de casa a partir das 16h deste domingo (16) é impensável se for comparada com as imagens disponíveis no YouTube do que fazia o técnico colorado em junho de 2011.
Enquanto o Inter de Paulo Roberto Falcão se preparava para enfrentar o Figueirense pela 6ª rodada do Brasileirão, Miguel Ángel Ramírez era a estrela de um episódio do programa Canarios por el mundo, um quadro do canal RTVC, do governo das Ilhas Canárias. Bem vestido, voz mansa, explica: está fazendo intercâmbio na Grécia, como parte do curso de licenciatura em Ciências da Atividade Física e do Esporte. Aproveitava os seis meses proporcionados pelo programa Erasmus (o mesmo daquele filme O Albergue Espanhol) para aprender um pouco mais do futebol do país e a língua. Faz estágio no Panathinaikos, mas o principal do vídeo é outro, e é isso o que mais demonstra quem é comandante colorado.
— Aqui é o novo Museu da Acrópole. Foi inaugurado há pouco. São 14 mil metros quadrados e tem mais de 4 mil peças, algumas estavam no Partenon, outras em diversos lugares, algumas com mais de 2,5 mil anos. Aliás, esse é um dos objetivos do museu, trazer para Atenas relíquias espalhadas pelo mundo — diz, olhando para a câmera, deixando claro que não era um texto decorado nem uma leitura. Sabia o que falava.
O vídeo segue por outros seis minutos, mostrando sua vida na capital grega. Passa pelo metrô, onde Ramírez conta mais detalhes da história da construção e os percalços de que cada escavação encontrava uma peça histórica (os males de cidades que iniciaram a civilização europeia). E termina no estádio do Panathinaikos.
Depois disso, o espanhol voltou ao Las Palmas, deu aula em escola para todas as idades, lecionou até na universidade. E, depois, entrou em escolinhas e fixou-se no esporte. Se não jogou profissionalmente, apenas por diversão, pouco fez falta. Gostava, mesmo, era de trabalhar com jovens.
— Ser treinador me permitia juntar minha vocação, que é a educação, e minha paixão, que é o futebol, em uma só profissão — disse à publicação espanhola Panenka.
O resto da história já foi contado. Ramírez passou pelo Las Palmas, depois saiu do país para trabalhar com a Aspire Academy no Catar, permaneceu no Oriente Médio por seis anos e cruzou o mundo novamente até o Equador, no Independiente del Valle, sempre nas categorias de base. Na América do Sul, caiu no colo a chance de treinar o time principal. E, no seu primeiro semestre como técnico, conquistou a Copa Sul-Americana.
— Sabia que aquele período não era referência. Não era normal. Ser campeão de um torneio internacional depois de seis meses de carreira não é real — respondeu à Panenka.
É aí que entra Roberto Olabe, o responsável por levá-lo ao Equador. Seu guia na profissão, ele atualmente está na Real Sociedad, como diretor esportivo. Foram momentos de conversas, conselhos e amizade. Olabe alertou-o sobre o futebol, o futuro. Só depois de concluir seu contrato no clube equatoriano, aceitou assinar com o Inter. É essa a bagagem que Ramírez trouxe a Porto Alegre.
— Ele tem essa carga cultural, isso é um aspecto diferente do trabalho. Nem sempre é valorizado, mas considero muito importante — afirma Alessandro Barcellos, presidente do Inter.
Ramírez já conheceu o Gre-Nal, inclusive o lado ruim. Agora, vai conhecer a decisão do Gauchão. Quem diria que aquele estudante intercambista estaria aqui, hein?
O que vale o Gauchão para o treinador
Nos dias que se sucederam ao título da Copa Sul-Americana pelo Independiente del Valle, o celular de Miguel Ángel Ramírez quase parou de funcionar, tamanha a quantidade de chamadas que recebia, seja para dar entrevista ou, principalmente, para ouvir propostas de empregos. Balançado por algumas ofertas, ouviu do amigo Roberto Olabe:
— Quieto. Aí tens um clube que te dá estabilidade. Um lugar onde podes acumular experiência e jogos. Vais sair para ir a alguma equipe que vai te demitir se perder três jogos?
Foram essas as frases que fizeram o técnico espanhol cumprir o contrato no Equador até o final — inclusive rejeitando ofertas de gigantes sul-americanos. O caso mais público foi o Palmeiras. Passados poucos meses de Inter, Ramírez viu que Olabe estava certo.
Na corda bamba do futebol brasileiro, Ramírez já foi chamado de mágico, por ter feito goleadas implacáveis em adversários como Juventude e Olimpia, e já precisou se equilibrar por ter perdido para Deportivo Táchira e Always Ready. E, claro, para o Grêmio. Na entrevista à Panenka, quando ainda treinava o Independiente del Valle, disse:
— Depois de ter sido campeão, sabia que perderíamos um dia. E que voltaríamos a vencer. E, depois, a perder. No futebol, se perde mais do que se ganha.
O único problema é que as vitórias são urgentes para o Inter. Desde 2017, Ramírez é o sexto técnico que tenta tirar o clube da fila de títulos. Pesam sobre ele as conquistas que não vieram com Antônio Carlos Zago, Guto Ferreira, Odair Hellmann, Eduardo Coudet e Abel Braga (além de Zé Ricardo e Ricardo Colbachini, que comandaram o Inter na reta final de 2019). Para piorar, o adversário é o Grêmio, que tem vantagem nos últimos encontros.
A vantagem do espanhol é que, graças ao seu trabalho, tem conquistado a direção. O presidente Alessandro Barcellos contou:
— Tinha acabado o treino, era véspera de um jogo, e o Ramírez me chamou: "Presidente, vamos lá ver o sub-20?". Daí fomos juntos até o Passo D'Areia.
O treinador dedica-se integralmente ao clube. Chega no CT às 7h30min todos os dias e só vai para casa à noite. Alugou um apartamento na Zona Sul, com vista para o Guaíba, eventualmente assa uma carne por lá. Mora sozinho. Seus pais, Antonia e Miguel, ainda não vieram da Espanha, e sua namorada, que é equatoriana, ficou um tempo com ele, voltou ao seu país e deve retornar a Porto Alegre nos próximos dias.
Dia desses, saiu para jogar padel (um dos esportes mais populares em seu país) com o auxiliar Osmar Loss. E, sempre que possível, bate uma bolinha com os colegas no CT.
— Ele joga bem, sim. Movimenta-se bastante, aparece para o jogo — garante Barcellos, que completa: — É apaixonado por futebol. Nos voos, fica vendo jogos, lances.
Outro ponto fundamental: está totalmente integrado ao Inter. É fácil encontrá-lo conversando com Gustavo Grossi (comandante da base), buscando alternativas ao clube.
— É claro que pensa na carreira, não tem como. Mas ele se preocupa com o Inter — finaliza Barcellos.
Por isso tudo, o domingo marca o começo de uma das semanas mais importantes de sua trajetória. Há as decisões do Gauchão e tem o Olimpia na quinta-feira.
Quem é
- Nome: Miguel Ángel Ramírez Medina
- Naturalidade: Las Palmas (Espanha)
- Idade: 36 anos, 23/10/1984
- Clubes: Independiente del Valle (2019-2020). Na base: seleção do Catar sub-17 e sub-14 (2012-2018), Aspire Academy Catar (2012-2018), Alavés sub-16 (2012), Las Palmas sub-17, sub-16, sub-10 e sub-9 (2004-2012).
- Principal título: Copa Sul-Americana (2019)