Com 531 obras literárias de gêneros como conto, crônica, biografia, poema, romance, peça de teatro e até história em quadrinhos, o “Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 2021 Literário – Ensino Médio”, do governo federal, oferece uma diversidade considerável de assuntos e formatos para as escolas participantes estimularem a leitura entre seus alunos. Recentemente, um título dessa lista chamou a atenção, após críticas de uma diretora que culminaram na censura do livro, por parte da 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), depois revertida pela Secretaria Estadual de Educação. Trata-se de O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti de 2021, na categoria Romance Literário. Depois disso, ao menos três Estados determinaram o recolhimento dos exemplares desse título em instituições de ensino.
A reportagem de GZH convidou quatro especialistas em Literatura para analisar a lista das obras presentes nessa edição do PNLD. A iniciativa – uma das maiores do mundo, em termos de distribuição de livros a escolas – tem adesão voluntária e as próprias instituições fazem a escolha dos títulos. Após a seleção e o recebimento, no entanto, o uso do material é obrigatório, e a não entrega do material aos alunos e professores pode gerar sanções.
Todos os especialistas consultados chamaram a atenção para a diversidade existente na lista de obras, que pode ser conferida neste link. Também questionaram o que faz um livro ser adequado ou não para estar em uma escola e ressaltaram o fato de palavrões e sexo existirem na sociedade e na vida de adolescentes. Apontaram, ainda, para a relevância da figura do professor no processo de mediação dessas leituras. Na edição em questão, o público-alvo são alunos de Ensino Médio, que têm de 16 a 18 anos.
Avaliação de Arthur Telló, professor da PUCRS e diretor do Sinpro/RS
Entre os critérios do PNLD, há uma parte que fala sobre a adequação temática no âmbito do Ensino Médio. Achei interessante um parágrafo que diz: "não serão selecionadas obras que apresentem preconceitos, estereótipos ou discriminação de ordem racial, regional, social, sexual e de gênero, religioso, entre outros, tampouco aquelas que incitem a violência entre seres humanos ou contra outros seres vivos, em qualquer uma de suas diversas manifestações. Importante ressaltar que obras deverão evitar conduzir explicitamente a opinião e o comportamento do leitor". Acho que esse é o grande problema que as pessoas têm com a literatura: a liberdade para o leitor criar suas próprias interpretações, que podem ser diferentes da família de origem, diferentes do campo ideológico onde as pessoas se inscrevem. E o texto segue: "devendo, diferentemente, proporcionar um grau de abertura que convide à participação criativa na leitura, instigando-o a estabelecer relações com suas experiências anteriores". Então, tudo está super qualificado, dentro dos critérios para a adoção dessas obras.
Títulos
É uma lista bem interessante porque mescla, de certa forma, alguns clássicos da literatura ocidental, da literatura de língua portuguesa e até mesmo literatura brasileira. A gente tem Machado de Assis, tem O cortiço em cordel, a gente tem Morte e vida severina, tem A hora da estrela, Os sinos da agonia, do Paulo Autran, que é um autor quase esquecido. Então, a gente tem diversos clássicos da nossa literatura que são importantes, mas também livros que sempre foram polêmicos, como A revolução dos bichos e 1984, do George Orwell, o próprio Fausto. É lista bem interessante tanto pela diversidade de gêneros, como poesia, conto, cordel, quadrinhos, romance, como pela diversidade de autores e autoras. Tem O Filho Eterno, do Cristóvão Tezza, tem Pedro Páramo, do Juan Rulfo, até clássicos da literatura grega, como Teogonia. Tem Gilgamesh, que não é grego, mas é da antiguidade. São diversos textos que realmente tentam dar conta de uma diversidade cultural e de múltiplos olhares para a realidade e para o fenômeno da criação.
O caso de censura a O Avesso da Pele, presente nessa lista, lembra muito aquele acontecimento que houve no ano passado em Santa Catarina, com a retirada de livros da biblioteca, porque a gente pensa em campos de disputa política, com tensionamentos. Existe uma frente pela liberdade de ensinar e aprender que está se contrapondo a uma outra frente que quer fazer uma espécie de polícia do pensamento, policiamento ideológico. Essas pessoas do policiamento ideológico carregam muitos fantasmas dentro delas, não são bem resolvidos e projetam no outro.
Adequação
O livro do Jeferson Tenório, por exemplo, é sobre racismo estrutural, sobre a morte de um professor negro nas mãos da polícia. O ponto do livro é esse. Se eu fico abismado, surpreendido, ofendido com as cenas sexuais que aparecem na obra, isso é mais um problema meu, enquanto leitor e ser humano, do que da obra. Estou desviando do foco dela para discutir outras coisas que não cabem na obra e fazem parte do enredo, do desenvolvimento do personagem, até porque os nossos estudantes, nessa idade, passam por uma maturação sexual, que é um período biológico natural. Uma das funções da literatura é organizar o que a gente sente por meio das palavras, para nomear o real. O sexo lida com a descoberta de si e do outro, então, é algo extremamente importante para ampliarmos o campo do acesso, ampliar também os nossos campos de identidade, percepção, pertencimento. É uma fase da vida retratada na literatura. Além disso, temos muitos estímulos culturais a isso, quase uma hipersexualidade da infância pelas redes sociais. É interessante que muitas coisas que eles veem na TV, no computador, não ofendem, mas aquilo que está em uma obra de literatura, sim.
Uma das funções da literatura é organizar o que a gente sente por meio das palavras, para nomear o real. Essas cenas sexuais, existentes em muitos romances, são importantes até para a pessoa entender a si mesma, o personagem e o outro, porque o sexo lida com a descoberta de si e com a descoberta do outro, da relação. Então, é algo extremamente importante para a gente ampliar o campo do acesso, ampliar também os nossos campos de identidade, percepção, pertencimento. É uma fase da vida retratada na literatura.
Temática sexual
A temática sexual é recorrente na literatura, porque é um tema humano. Nas aulas tradicionais de literatura do Ensino Médio, em todo momento tu vais estudar obras muito mais violentas, que têm um uso da sexualidade muito mais brutal, obras que fazem parte do cânone brasileiro e que são diferentes na cultura, ou da língua portuguesa, por exemplo, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, do Eça de Queiroz, em literatura portuguesa. Mas, aí, tu tens diversas situações que passam pela sexualidade e pelo sexo: O Primo Basílio é uma história de traição, O Crime do Padre Amaro é um padre que seduz uma fiel e, ainda por cima, ocorre a morte do filho que ele tem com ela. Então, é um livro extremamente violento.
No Brasil, temos o caso do próprio O cortiço, que é um retrato social do Brasil. A gente diz que o espaço é o principal personagem, a gente vê a degradação dos personagens nesse espaço, e representa toda uma sexualidade do Brasil, uma hipersexualização da mulata, da Rita Baiana, dos negros. Há diversas violências ali presentes e, se alguém fizer uma lista de leitura obrigatória como essa com O cortiço, ninguém vai se ofender, sendo que ele tem um potencial ofensivo muito maior do que o livro do Jeferson. A nossa cultura explora o sexo, seja para mostrar as violências inerentes a ele, seja como lugar de invenção, criatividade e prazer. O próprio Nelson Rodrigues, que é um autor de direita, reacionário, também condena essa mesma direita comportada, quando fala de todos os sintomas de uma classe social parasitária e decadente.
Avaliação de Carlos André Moreira, jornalista, mestre em Literatura pela UFRGS, crítico literário e editor do blogue Admirável Mundo Livro
Ao apresentar a lista, o Guia Digital do Programa Nacional do Livro e do Material Didático afirma: “As obras literárias para o Ensino Médio, tanto as de língua portuguesa quanto as de língua inglesa, deverão potencializar entre os estudantes a capacidade de reflexão quanto a si próprios, aos outros e ao mundo que os cerca, proporcionando o contato com a diversidade em suas múltiplas expressões por meio de uma interação eficiente – e gradativamente crítica - com a cultura letrada, sem descuidar da dimensão estética.”
Sendo esse o objetivo declarado do programa, a lista em sua integralidade o cumpre. Há uma ampla variedade de títulos, linguagens e gêneros artísticos: narrativa longa, narrativa curta, quadrinhos, adaptações de clássicos em quadrinhos. Há bons e premiados exemplares recentes da literatura nacional que põem em discussão temas urgentes da sociedade brasileira, como racismo e questões de gênero. O mencionado O avesso da pele é um deles. Torto arado, de Itamar Vieira Jr., é outro. A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, de Maria José Silveira, outro ainda.
A lista é ampla, mas entre os livros selecionados não há apenas obras contemporâneas, também estão lá clássicos comprovados da literatura, seja brasileira, seja internacional. São exemplos não exaustivos: Fogo Morto, Vidas Secas, Capitães da Areia, O Médico e o Monstro, Cem Anos de Solidão, Pedro Páramo, O Auto da Barca do Inferno, Dublinenses, contos de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Antes do Baile Verde, A Máscara da Morte Rubra etc. Logo, há uma ampla variedade de livros já pacificados pelo que se chama de “cânone” à disposição para escolha nessa lista, embora, numa comprovação de o quanto esta discussão inteira é de um filistinismo monumental, muitos desses livros hoje aceitos sem problemas foram eles próprios motivos de escândalo devido ao “consenso moral” de seu tempo.
Dublinenses, por exemplo, de James Joyce, presente na lista do edital, teve sua publicação atrasada por anos no início do século XX porque o editor estava preocupado com “palavras de baixo calão” usadas pelo autor em seu original. No campo da literatura brasileira, não pude deixar de achar intrigante que O cortiço, de Aluísio Azevedo, o tipo de livro que despertava as risadinhas constrangidas de leitores adolescentes em minha época de Ensino Médio devido a suas cenas de sexo não necessariamente explícitas, mas algo diretas, consta no edital.
Aliás, há também um livro na lista com uma seleção de “o melhor de Nelson Rodrigues”, incluindo trechos de seu teatro, contos e crônicas. Seria de ver que tipo de seleção foi feita (esse livro que está ali especificamente eu não li). Nelson Rodrigues, mostrando o quanto a histeria em torno das “palavras de baixo calão” distorce a narrativa, foi por anos taxado de pornográfico devido a suas representações de “tragédias cariocas”, famílias disfuncionais, violências sexuais, abusos físicos e psicológicos.
Com isso, não estou dizendo que qualquer um dos livros anteriormente citados deveria ser proibido ou retirado da lista. Apenas que O avesso da pele está sendo usado para levantar uma discussão algo sensacionalista que claramente parece ter outro tipo de motivação.
Temas
A relação apresenta romances, livros de contos e de crônicas, adaptações literárias em quadrinhos, histórias originais em quadrinhos, peças de teatro, livros mitológicos (como Gilgamesh, Popol Vuh e Mitologias Yanomami), romances policiais, narrativas não ficcionais, como memórias, diários, relatos autobiográficos. É uma lista muito diversa e de amplo espectro temático e de concepção narrativa. São abordados (não exclusivamente) temas como pobreza, a condição da mulher no mundo dominado pela mentalidade masculina, dilemas da adolescência como inadequação, bullying, dinâmicas de inserção e aceitação familiar. Há também livros de memórias, relatos da história brasileira, contos tradicionais e mitológicos, ciência (até A Origem das Espécies, de Darwin, está na lista), clássicos, histórias de outros países e de outras literaturas até pouco tempo não contempladas no ensino brasileiro, como é o caso de livros da escritora nigeriana Buchi Emecheta, que lida com o papel da mulher como o personagem “do lado avesso” em uma sociedade africana que concilia a modernidade com modelos ainda muito tradicionais de sociedade. Nenhum desses temas é, a priori, proibitivo ou não recomendado para adolescentes, tudo depende do tratamento e da linguagem – da linguagem conjunta do livro, reforço, não de um ou outro palavrão aqui ou ali.
Adequação
Esse talvez seja o elemento mais capcioso de toda esta discussão, dado que os alunos a quem a lista se dirige são justamente os que estão em período da transição e que, dependendo do caso, pode-se argumentar que um mesmo livro indicado nessa lista poderia ser lido sem problemas por um adolescente de 17 anos, mas não por um de 15, e ambos estão na mesmíssima faixa etária abarcada pelo Ensino Médio. De modo geral, a qualidade das obras da lista é comprovada e o conjunto é muito bom e abrangente. A grande discussão é que, num universo de mais de cinco centenas de obras, qualquer professor minimamente interessado tem ali material mais do que suficiente para elaborar uma lista de leituras muito rica em temas, linguagem, qualidade e em propositura de discussões. Mas, é claro, isso depende que os responsáveis pela escolha dos livros, que são as escolas, estejam dispostos a fazer o básico de seu trabalho e a ler o livro, algo que, pelas declarações que li até agora desse caso em particular, ninguém da referida escola parece ter feito.
Avaliação de Caroline Valada Becker, mestra e doutora em Teoria da Literatura e professora do Colégio de Aplicação da UFRGS
O PNLD Literário tenta contemplar variados gêneros literários, formatos de narrativa, até poesia. É uma política pública de democratização do acesso à leitura literária. Essa conversa sobre a temática dos livros e sobre a adequação à faixa etária é uma discussão muito complexa quando se fala em literatura. É mais ou menos como fazer a pergunta “o que é literatura”, sendo que, ao longo do tempo, essa concepção se transformou e depende de perspectivas teóricas.
Falamos muito sobre o endereçamento de algumas produções artísticas do campo literário. Ou seja: elas são criadas pensando em um leitor, e aí pode entrar a faixa etária. Essas definições são mais editoriais do que de produção. Mesmo que haja um endereçamento, o livro pode transitar por diferentes idades, e tudo depende do amadurecimento do leitor e da leitora. Diante de uma turma, cada um vai estar num tempo de vida, numa percepção, num processo de amadurecimento, traz o seu conhecimento de mundo. Por isso, a figura extremamente importante nesse processo é o mediador e a mediadora de leitura, ou seja, o professor e a professora. Seria importante pensar por outro caminho: ao invés de pensar sobre a faixa etária adequada, pensar qual trabalho está sendo feito, que mediador e mediadora é essa, no processo de escolarização, na leitura literária, que pode ser feita de modo adequado ou inadequado.
É importante saber que, no PNLD Literário, há uma banca de avaliadores e avaliadoras do Brasil inteiro, que têm uma lista imensa de critérios para avaliar esses livros. Estamos diante do PNLD destinado ao Ensino Médio, então, há uma presença maior do que chamamos de literatura adulta, ou sem adjetivo. É a literatura não adjetivada que está, muitas vezes, no cânone literário, dentro da historiografia e, também, no Ensino Médio. Não só dessas obras canônicas, felizmente, a lista tem se feito: há muitas obras contemporâneas, como O avesso da pele, e tudo que é contemporâneo tem um impacto diferenciado, porque a linguagem se aproxima mais aos dias de hoje, e as próprias temáticas têm mais a ver com o nosso tempo.
Temas
O PNLD tem um volume muito grande de obras. Temos, por exemplo, A vida que ninguém vê, de Eliane Brum, que transita entre crônica, reportagem e conto, inclusive é um gênero híbrido, e tem uma entrada de temáticas sociais muito expressivas. Temos um Dom Quixote adaptado, Venha ver o pôr do sol e outros contos, Contos africanos dos países de língua portuguesa, dentro do gênero conto, crônica e novela. Temos Manoelzão e Miguelin, do Guimarães Rosa, um grande clássico. Temos também histórias em quadrinhos ou romances gráficos, narrativas gráficas de algumas adaptações de clássicos, como O espelho, do Machado de Assis, O quinze da Rachel de Queiroz, Triste fim de Policarpo Quaresma.
Nos romances, mais uma vez há clássicos no campo da historiografia, e raramente serão questionados pela sociedade, porque já têm um valor atribuído. A literatura contemporânea, por outro lado, a partir da crítica imediata à publicação dos livros e a partir do campo acadêmico, ainda está construindo o seu lugar no campo da produção literária. Temos O filho eterno, que se tornou um clássico a partir de leitura de vestibular aqui do RS, Cem anos de solidão, Vidas secas, Fogo morto. Todas obras canônicas, já muito conhecidas. Temos O avesso da pele, do Jeferson Tenório, sobre o qual tivemos a polêmica recente. Temos Torto arado, outra obra superimportante, contemporânea, cuja qualidade artística literária é indiscutível.
Essas obras não foram feitas para a escola, como os clássicos também não foram. Não foram feitas para ter uma classificação editorial ou um endereçamento a um leitor jovem, mas essa literatura também deve estar em sala de aula, que é a literatura que está sendo produzida por autores e autoras vivos e vivas nos dias de hoje. O que se precisa é de um trabalho pedagógico com essas obras, uma mediação qualificada de leitura, para que possamos ter leitores e leitoras também com qualidade.
Adequação
A discussão sobre o que seria ou não adequado para ser levado para a sala de aula, tendo em vista a faixa etária, muitas vezes cai no campo do moralismo e de uma ideia de literatura asséptica, que não fala sobre corpos, desejos, sexualidade, temas que chamamos de "fraturantes”, que são complexos, como a dor, a perda, o luto. Muitas vezes, as escolas optam por não trabalharem produções cuja temática verse sobre algum desses temas que possa ser polêmico, ou seja, tabus, que constituem os sujeitos como eles são, mas que podem movimentar algumas famílias no sentido de acharem aquilo inadequado.
Se a comunidade escolar, os pais e a própria direção confiassem no trabalho docente ou pleiteassem mais formações e qualificações, não teríamos essa discussão tão ingênua sobre a circulação da literatura na escola, que ainda quer colocar uma etiqueta na obra que pode ou que não circular. Eu parto da premissa de que toda obra pode circular, desde que tenhamos a mediação necessária. O caso de O avesso da pele evidencia o quanto o leitor incapacitado, que não se formou como leitor ou leitora de qualidade da literatura, se prende a breves trechos que, por exemplo, possam ter palavrão. E é a isso que eu me refiro com a ideia da literatura asséptica, como se o palavrão não fizesse parte da sociedade. Um livro tão potente – que versa, inclusive, sobre sala de aula, mas que fala, é claro, sobre preconceito étnico-racial no Rio Grande do Sul – foi reduzido a um palavrão, e a uma referência à sexualidade, que é algo que existe. Precisamos falar sobre isso com os jovens de Ensino Médio.
Avaliação de Reginaldo Pujol Filho, escritor e doutor em Escrita Criativa pela PUCRS
A primeira coisa que me chama a atenção na lista do PNDL Literário é a quantidade de autores, autoras e títulos que não andam nas listas de mais vendidos, nem entre os mais badalados de eventos, prêmios e bolhas literárias, o que, imagino, se deva às regras da seleção, que limitam o número de títulos por editora, o que abre esse espaço. São mais de 500 livros que talvez não alcançassem leitores, não fosse a oportunidade do edital.
Temas
Ainda assim, a partir dos livros que li, dos livros de que tenho conhecimento e de alguma pesquisa, tenho a sensação de que não há um predomínio esmagador de um ou dois temas. Há certa variedade de temas com algum destaque para uma temática bastante ampla que poderia se chamar de questões da adolescência, ou transição para a vida adulta. Livros com protagonistas adolescentes que precisam amadurecer diante de diversas circunstâncias: orfandade, luto, racismos, abuso, machismo. Também é perceptível a presença de livros que abordam temáticas feministas, que discutem o racismo e, de um modo mais amplo, desigualdades sociais. Me chama a atenção a presença nada desprezível de uma fatia de livros de horror e terror, com destaque para múltiplas edições de títulos de Edgar Allan Poe. Mas também surgem temas com saúde mental, multiculturalismo, bullying, guerra, holocausto, ecologia, entre outros.
Por outro lado, há obras, como Primeiras histórias, de Guimarães Rosa, Melhores contos, de Rubem Braga, Dom Quixote ou antologias de Paulo Leminski, Haroldo de Campos, entre muitos outros, em que tentar definir temas e assuntos é difícil e até infrutífero.
Penso que, muitas vezes, o tema de uma obra, para fins didáticos, pode (e talvez deva) depender do olhar de quem lê e prepara o material. Por exemplo: na lista está Romeu e Julieta. Qual é o seu tema? É um livro sobre amor impossível? Mas também podemos pensar, por que não, sobre uma sociedade fraturada? Devemos lembrar do que diz Italo Calvino sobre os clássicos (mas que podemos estender a tudo o que merece ser chamado de literatura): é aquilo que não para de significar, que não se resume, que não se deixa prender por um só significado e se renova com o passar do tempo e das leituras.
Censura
Quanto à censura à obra de Jeferson Tenório, quero destacar que as alegadas motivações não se referem à temática mais evidente do livro. Se prendem a alguns episódios e expressões encontradas no livro. Se me perguntassem semana passada sobre a presença de sexo em O avesso da pele, eu teria dificuldade de me lembrar. Ou talvez nem lembrasse.
Dito isso, não há problema em apresentar questões sexuais e palavras, seja lá quais forem essas palavras, para estudantes de Ensino Médio. Se uma das funções da literatura em sala de aula é de conhecimento e discussão do mundo, esses assuntos e todas as palavras devem estar presentes. Caberá aos professores e professoras mediarem os temas, estarem dispostos a ouvir e provocar questões.
E aí surge um problema que se soma a onda reacionária que ainda impera no Brasil: a desvalorização do magistério. Um professor mal pago, com acúmulo de horas, com stress, com cansaço, sem motivação (como o personagem de Jeferson Tenório) terá condições de preparar materiais complexos, que fogem aos clichês, que provocam alunos e alunas a pensar e não a decorar conteúdos? Isso dá trabalho e traz responsabilidade.
Mas o seguro é: tratar alunos e alunas do Ensino Médio como seres intocados, que desconhecem sexo, o nome dos órgãos sexuais, termos associados à prática sexual, é de uma ingenuidade perigosa. É insistir em uma sociedade hipócrita que trata a sexualidade como tabu, sobre o qual não se fala, criando vergonhas e o pior, ignorância, medo, silêncio diante de abusos e violências. Por que sexo é coisa de que não se fala?