Diante de uma tragédia como a do desabamento do prédio ocupado no centro de São Paulo, alguma parte minha, alguma parte nossa esperava que houvesse ao menos compaixão pelas famílias que viviam em situação precária e perderam o pouco que tinham – isso as que sobreviveram, é claro. Famílias. Idosos. Crianças. Pessoas. Muitas pessoas, de todos os tipos. Pessoas. Mas não.
Um prédio de 24 andares pega fogo e a culpa é: de um líder do movimento de moradia – que nem tinha nada a ver com aquela ocupação, do comunismo, do PT, do socialismo, do Lula. O governador de São Paulo declara que as pessoas precisam “se convencer” a não morar em situação precária, porque é claro que só mora em um prédio abandonado quem quer. O ex-prefeito, agora candidato a governador (que não chegou a cumprir 20% do que prometeu e marcou sua gestão se fantasiando de trabalhador), diz que a ocupação era financiada por uma facção criminosa.
Ninguém se importa com as pessoas. Com as famílias. As pessoas. Moradores do entorno se preocupam com as rachaduras dos prédios históricos tombados ao redor. Dizem que as ocupações são um perigo para “a população”. Espera, então quem mora em ocupação não conta como população? Quem é a população? Só a classe média conta? Quem não tem sequer um teto sobre a cabeça não existe? É tudo vagabundo que invade propriedade privada, afinal. Tudo drogado, tudo delinquente, puta, ladrão, preto, pobre, menos que humanos.
Na televisão a repórter do canal de notícias diz que algumas das 44 pessoas que moravam na ocupação e eram cadastradas pela prefeitura AINDA não se apresentaram à assistência social porque “podem ter sido vítimas” ou talvez estejam VIAJANDO no feriado. Indivíduos sem nome dão entrevista dizendo que OUTROS PRÉDIOS sofrem com ocupações irregulares. Os prédios sofrem. As pessoas que não têm onde morar? Ora, danem-se. Quem sofre são os prédios. A culpa do desabamento é de quem estava lá. Culpam quem não tem nada, o gás, uma suposta panela de pressão. Limpam com fogo.
A narrativa dada na cobertura sobre o incêndio/desabamento só deixa mais desconfiança de que não foi acidente. Quem lembra das favelas que “pegavam fogo” espontaneamente? Limpam com fogo. As palavras não são escolhidas por acaso: “invasão”, “prédios cheios de usuários de drogas”, “perigo à população” na boca dos escolhidos. De novo a população que não abarca a todos.
Querem criminalizar os movimentos de moradia e já estão usando essa tragédia para interditar outras ocupações. Em nome de quê? A quem interessa? Ora, há alguns anos começaram uma “revitalização” do centro de SP, mais conhecida como gentrificação, fenômeno nada natural que aumenta os preços de bairros/regiões, impedindo que antigos moradores/população de baixa renda lá permaneçam pois tudo se enche de novos empreendimentos de 30 metros quadrados com nomes moderninhos vendidos a milhões. A quem será que interessa?
Não dá pra fingir normalidade diante da barbárie, é pra ficar mal mesmo, é pra se horrorizar.
É Dia da Mães, não é? Nas ocupações está cheio delas. Mas quem sofre são os prédios, pobres prédios.
Limpam com Fogo é o nome de um documentário de Rafael Crespo sobre a relação dos incêndios em favelas com a especulação imobiliária em São Paulo. Limpam com fogo as vidas que valem menos do que as paredes que caem. Limpam com fogo.
Leia mais colunas da Clara:
::