Vale ver o vídeo no YouTube. Aparentando algum nervosismo nas mexidas de cabelo, a jovem de 34 anos conta que sua reação ao receber o convite para discursar diante daquela turma de formandos de Harvard foi cogitar a contratação de um “ghostwritter” – alguém para escrever o discurso anonimamente em seu lugar. Ela prossegue:
– Devo admitir que mesmo hoje, 12 anos depois de formada, ainda estou insegura do meu merecimento. Hoje, eu sinto mais ou menos como no meu primeiro dia como caloura desta universidade, em 1999. Sentia que havia acontecido um erro. Que eu não era inteligente o suficiente para estar com aquelas companhias e que, toda vez que eu abrisse minha boca, teria de provar que eu não era apenas uma atriz idiota.
A autora do discurso é Natalie Portman. Àquela altura, em 2015, ela já tinha na estante um Oscar de Melhor Atriz, por Cisne Negro (2011). Reconhecida como uma atriz talentosa desde os 12 anos, quando estrelou O Profissional (1993), Natalie interrompeu a carreira em 1999 para cursar Psicologia em Harvard. Depois de formada, em 2003, publicou dois artigos científicos e, não satisfeita, fez aulas complementares na Universidade de Jerusalém. Além disso, estudou cinco idiomas: além do inglês, sabe francês, japonês, alemão e árabe.
Mesmo com múltiplas provas de competência, sucesso e inteligência, o discurso é uma demonstração clara de que a atriz ainda luta em seu dia a dia com um mal conhecido por aqui como “síndrome da impostora”. Trata-se de uma sensação recorrente de que a pessoa não merece o reconhecimento que tem, e que, a qualquer minuto, todos ao seu redor descobrirão que a pessoa é – rufem os tambores – uma fraude.
E Natalie está muito bem acompanhada. O título da primeira aparição do termo na literatura científica, um artigo das psicólogas norte-americanas Pauline Rose Clance e Suzanne Imes, de 1978, é bastante emblemático de quais são os maiores “grupos de risco” da síndrome: ele se chama “O fenômeno da impostora em mulheres bem-sucedidas – Dinâmicas e intervenções terapêuticas”.
Não só atrizes renomadas, mas executivas, pesquisadoras e outras tantas mulheres revelam sofrer dessa sensação de inadequação. E se o mundo as cerca de conquistas pessoais, acadêmicas e profissionais, das duas, uma: ou aconteceu algum erro na seleção – como apontou Natalie, em seu discurso –, ou elas conseguiram enganar a todos. E qualquer um pode perceber o quanto elas são superestimadas a qualquer momento.
Entre os efeitos mais graves dessa síndrome, estão ansiedade, baixa autoestima, depressão e uma frustração constante relacionada à incapacidade de alcançar os padrões de sucesso impostos a si mesmas. Mas só há “impostoras” mulheres por aí? Por que não “impostores”?
Especialistas afirmam que homens também podem sofrer desse mesmo mal. Porém, desde o artigo que deu origem ao termo, há uma curiosidade sobre as questões de gênero do problema. Pauline e Suzanne chamam a atenção para um estudo anterior que investigou como homens e mulheres reagiam ao sucesso e ao fracasso. Uma diferença em especial chamou a atenção dos pesquisadores.
Mulheres tendiam a atribuir seu sucesso a fatores temporários e externos, como sorte e esforço, enquanto homens atribuíam seus êxitos a atributos internos e pessoais, como habilidade e competência. No fracasso dava-se o inverso. Quando malsucedidas, as mulheres atribuíam o fracasso à falta de habilidade e à incompetência, enquanto os homens justificavam com falta de sorte ou dificuldade excepcional da tarefa. Qual dos dois está correto? Na opinião da psicóloga e coach de vida e carreira Arieli de Freitas Groff, possivelmente nenhum dos dois:
– Enquanto a gente observa nas mulheres uma dificuldade de reconhecer suas habilidades, inclusive para “se vender” melhor, para o homem é vergonhoso dizer que não sabe. Que há tarefas que ele não tem competência para fazer. É o que faz a mulher tender a diminuir seu currículo e o homem a turbiná-lo. Ambos podem acabar desenvolvendo a mesma síndrome, mas por caminhos diferentes. Nenhum deles é uma relação completamente honesta e saudável com o trabalho.
Arieli atribui muito da proliferação de “impostores” a uma visão distorcida do trabalho que nasce na infância. Quando a criança cresce ouvindo dos pais máximas como “O que vem fácil, vai fácil”, “Para dar valor, tem de ser difícil”, “Precisamos trabalhar para colocar comida na mesa” ou “Isso não é pro nosso bico”, vai desde muito cedo criando relações distorcidas entre esforço e recompensa, trabalho e prazer.
– Por exemplo: as crianças cansam de ouvir os pais justificando que não podem isso ou aquilo porque precisam trabalhar. Mas raramente ouvem que eles trabalham porque gostam e se sentem realizados no emprego. Daí um sentimento de inadequação quando elas crescem e se dão bem em uma tarefa. Parece que o trabalho não tem valor se não vier com essa “sofrência” – opina Arieli.
Mas a visão distorcida de trabalho não é o único componente de um impostor que remete à infância. Após analisarem comportamentos de mais de 150 mulheres bem-sucedidas nas mais diversas áreas, Pauline e Suzanne chegaram à conclusão de que as que se sentem impostoras foram crianças divididas basicamente em dois tipos: a “sensível” e a “brilhante”.
NASCE UMA PEQUENA IMPOSTORA
Um exemplo de uma mulher que foi uma criança sensível aparece no depoimento de uma das leitoras de Donna que se identificou com os padrões de comportamento da impostora. Aos 40 anos, a analista de segurança no trabalho Daniela Couto conta:
– Certa vez, ouvi minha mãe falando “Não espero nada da Daniela”. Não sei dizer o contexto em que ela disse, mas aquilo ficou em mim. Anos mais tarde, lembro que me inscrevi em um concurso público e ela comentou que os filhos das amigas dela também concorreriam, logo eu não teria chances. No fim das contas, nenhum deles passou, e eu fui a quarta colocada no Brasil.
O nome “criança sensível” já embute um preconceito, pois a classificação vem dos pais. São eles que, nos comportamentos e comentários, apostam mais no sucesso profissional dos filhos mais competitivos e menos no dos mais emotivos. Na maioria das vezes, os primeiros são os irmãos homens e os segundos, as mulheres. Acaba que, de tanto duvidarem delas, elas acabam crescendo duvidando de si mesmas.
– No meu antigo emprego, por exemplo, lidava demais com homens no chão de fábrica. Às vezes, me pegava conferindo informações das quais tinha certeza porque, ao receber uma orientação minha, eles iam atrás de um consultor homem para conferir – comenta Daniela.
O segundo tipo, a “criança brilhante”, está no extremo oposto. É a criança cheia de tiradas de adulto, que tem facilidade para encantar plateias e que recebe seguidamente o retorno dos parentes de que ela é um prodígio. Quando a idade escolar chega, ela leva consigo os padrões de perfeição que recebia em casa. Ao perceber que tem dificuldades como todas as outras, conclui que, diferentemente do que lhe diziam, ela é burra e agora tem um personagem a ser sustentado para corresponder às expectativas à volta, mesmo depois de adulta.
A advogada Alessandra Busato, de 43 anos, comenta que levou oito anos para superar a síndrome da impostora, tempo que ela começa a contar a partir da dissolução do seu primeiro casamento, aos 30 anos, e da doença da mãe, um referencial de “mulher-maravilha”. E o caminho trilhado teve a ver com esse ajuste de expectativas.
– Acredito que a mulher não sabe lidar com a fragilidade dela. Justamente para esconder do mundo as suas imperfeições, a impostora acaba sendo centralizadora, não delega tarefa alguma para projetar que é a mãe perfeita, a esposa perfeita, a profissional perfeita. Evidentemente que, no íntimo, ela vai se sentir insegura – avalia Alessandra.
Todavia, o ajuste de expectativas é apenas um dos passos para superar o problema, algo extremamente difícil. Um dos apontamentos de Pauline e Suzanne é que, diferentemente de outras tantas questões comportamentais, ter consciência de que sofre da síndrome da impostora não é necessariamente um primeiro passo para a solução do problema, pois um dos comportamentos mais comuns das impostoras é buscar provas contra si mesmas. Validar o atestado de que são, mesmo, fraudes ambulantes. Por isso, é preciso olhar para cada comportamento da síndrome, pois cada tipo de impostora funciona de um jeito particular que demanda ações específicas para ajudá-la.
Pauline e Suzanne propõem quatro tipos de impostoras. Algumas se enquadram em mais de um tipo, mas raramente em todos eles. E – boa notícia – as quatro podem ser ajudadas. Vamos a eles.
Impostora número 1 – A esforçada:
Temerosa de que “sua estupidez possa ser descoberta”, a impostora esforçada transforma cada tarefa em um trabalho hercúleo. Faz horas extras, revisa cada trabalho mil vezes, não confia em colega algum e costuma ser a avaliadora mais cruel do próprio trabalho – mesmo diante de um feedback positivo. Quando o sucesso chega, ele parece vazio, pois ela crê que triunfou somente porque deu o sangue por aquilo e internaliza que esse superesforço é sempre necessário. Quando uma nova tarefa chega à sua mesa, o ciclo recomeça e o sentimento de que ela é uma fraude permanece intacto.
Impostora número 2 – A desonesta:
Entre os quatro tipos, a desonesta é a que mais se aproxima de fazer jus à pecha de impostora. Mas ela não faz por mal. A impostora desonesta se acostumou a falar para professores, supervisores e colegas o que eles gostariam de ouvir. Se pesca que um chefe gosta de PowerPoints com dezenas de slides, por exemplo, ela prefere engordar a apresentação mesmo que, na opinião dela, aquilo não seja necessário. Também é o tipo que foge das discussões quando não concorda com um ponto de vista, em vez de confrontá-lo. Seu sucesso acaba sendo trilhado alheio às suas convicções e visões de mundo.
Impostora número 3 – A charmosa:
A partir do autodiagnóstico de que é uma fraude, a impostora charmosa busca se aproximar dos seus colegas e superiores por outras vias, como ser querida, solícita ou demonstrar interesses nos hobbies dos chefes e colegas para fazer parte do grupo. O comportamento costuma esconder uma falta de autoestima, e, mesmo quando a impostora charmosa recebe um feedback positivo e honesto do seu trabalho, conclui que só o recebeu porque os colegas foram conquistados por ela, nunca pela qualidade genuína do seu trabalho.
Impostora número 4 – A medrosa:
Aqui entra mais um componente de gênero. Esse tipo de impostora tem medo das consequências negativas de ser vista como uma mulher de sucesso, como ser avaliada pelos colegas como uma pessoa mandona, antipática e hostil, o que pode de fato acontecer quando se atinge um posto de chefia. Quanto mais a medrosa se convence de que não tem capacidade para realizar um trabalho, mais ela se protege dessa rejeição social. Também é o tipo de impostora que não perde a oportunidade de valorizar mais o trabalho do marido do que o dela, com receio de tomar “o seu lugar” na dinâmica familiar.
E OS ANTÍDOTOS?
As terapias para a síndrome da impostora são complexas porque já partem de uma contradição, como aponta Dulce Hatzenberger, professora de psicologia da PUCRS:
– Para serem tratadas, elas precisam, mais do que perceber que sofrem disso, contar que sofrem disso. E faz parte de se sentir uma impostora esse constante medo de ser “desmascarada”. É um segredo que elas guardam. Em geral elas não comentam isso com ninguém para “não dar ideia”, para não chamar atenção para elas mesmas.
Por isso, boa parte dos tratamentos não é individual. Ocorre em trabalhos de feedbacks em grupo, que podem ser realizados por empresas ou mesmo informalmente por grupos de amigos. Isso faz com que boa parte das impostoras percebam, segundo Pauline e Suzanne, a “desconexão com a realidade” entre a opinião delas a cerca delas mesmas e a dos outros.
É o tipo de tratamento mais recomendado para as medrosas, que podem se surpreender de ver suas características de liderança elogiadas, e não vistas com antipatia, e para as charmosas, que precisam ouvir dos outros avaliações sobre o seu trabalho desconectadas das suas artimanhas do dia a dia para conquistar os colegas. É comum, por exemplo, que as charmosas se surpreendam ao ouvir um chefe dizer que ele sabe diferenciar um empregado competente de um mero puxa-saco.
Já para as esforçadas e desonestas, o tratamento demanda um esforço diário. Para as primeiras, uma mudança de pensamento importante é não começar uma tarefa com o pensamento “Se eu não estudar, vou fracassar” e sim “Se eu estudar, vou ter sucesso”. Parece a mesma coisa, mas a primeira frase traz uma carga imensa de ansiedade, enquanto a segunda uma relação direta entre capacidade e sucesso. Também cabe a esse tipo, aprender a lidar com o insucesso, tanto o individual quanto o compartilhado. Erro não é sinônimo de burrice.
Para as impostoras apelidadas de desonestas, não há outro caminho senão colocar as próprias ideias à prova. Não raro, elas percebem que os danos de dar um opinião legítima são bem menores do que elas imaginavam, e acabam encontrando outras pessoas simpáticas ao ponto de vista novo e, até ali, igualmente desconfortáveis para expressá-lo.
E, para todas os tipos de impostoras que desejam se livrar das suas máscaras, cabe a estratégia relativamente simples de nunca desmerecer, mas sim valorizar as conquistas e os feedbacks positivos ao longo das suas trajetórias. Vale retornar ao discurso de Natalie Portman àquela turma de formandos:
– Então, o que eu tenho para dizer a vocês hoje é também o que eu tenho de lembrar todos os dias a mim mesma. Harvard está dando a vocês diplomas. Se vocês estão aqui, estão aqui por um motivo.