Rua Augusta, São Paulo: cenário de tantas músicas, tantas brigas, tantos romances, tanta bebedeira, tanta loucurada. Ah, se aquele asfalto falasse, testemunha de tanta coisa, contaria dos carros que subiram a 120 por hora, contaria de gente rolando em briga, dos saltos das moças na viração gastando nas noites, do passinho cansado de velhinhos que ali moraram toda uma vida, dos trabalhadores que passam pra lá e pra cá a todas as horas do dia e da noite apressados, correndo até a Paulista, correndo da Paulista, correndo para pegar o ônibus, correndo, correndo, correndo como São Paulo pede.
Ninguém imagina o que está para acontecer. Ninguém desconfia, apesar dos claros sinais: bares fechando, casas de show sendo despejadas... A especulação imobiliária, amigos, ela não perdoa. Casarões centenários levados abaixo carregando com eles nacos da alma da cidade. Uma tristeza. Cidade que não preserva a história fica sem memória, sem chão, sem raiz. Espigões sem personalidade são erguidos em velocidade vertiginosa, cem, duzentos, trezentos apartamentos com vista uns para os outros. O horizonte é o rego do vizinho.
E banheiros. Cada um deles com seus banheiros. Milhares de novos banheiros sendo feitos. Onde antes havia quatro, agora há cem privadas. Todas serão usadas. Fezes de milhares de pessoas descerão todos os dias, várias vezes ao dia, passando por baixo da terra, por dentro dos canos velhos de uma rua antiga, muito antiga.
Olha, vai dar merda. Literalmente. Um dia aquele pobre sistema de esgoto surrado não aguentará e explodirá. Haverá pânico, horror, desesperança. Os bueiros saltarão como pipocas, e geisers de excremento subirão a céu aberto em um dia de semana. A gosma virará uma só e se arrastará rua abaixo, como que viva, levando tudo que houver no caminho, invadindo as vitrinas, escorrendo pelas ruas perpendiculares. É isso mesmo: vai haver um tsunami de fezes na Augusta. Não existe esgoto pra tanto excremento. Não existe. A merda vai sair e ver o sol, a merda não vai caber no subterrâneo. E todo esse caldo de ânus, que outrora esteve em mil intestinos, vai escorrer até a Praça Roosevelt, onde moro. Não há escapatória.
Estejam preparados, amigos.
Pode ser a qualquer momento.
Eu já mudei de lar para um lugar bem alto.
E digo mais: Porto Alegre, tenha cuidado. Eu bem estou vendo os espigões brotando por aí quando vou visitar. Não subestimem o poder do horror subterrâneo das coisas que saem de dentro de nós.
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