(Fotos: Fernando Rezende)
Talvez você já tenha esbarrado alguma vez na expressão “porn educated”. Foi assim que muitas mulheres classificaram seus ex em 2013, quando chegou ao Brasil o aplicativo Lulu, que convidava a dar notas e apelidos para antigos e atuais parceiros. E ser “educado a pornô”, em bom português, não era um elogio. Ao contrário. O Lulu teve seu auge e saiu de cena, mas a reclamação persiste: há homens que não sabem como tratar uma mulher na cama justamente por terem como referência os filmes pornográficos feitos para o público masculino. Ou seja, explícitos, sem criar um clima ou se preocupar com o que agrada (ou não) a elas. Na tela, a transa mais parece um circuito de academia: uma série de repetições para cada “exercício”, sem intimidade.
As mulheres reclamam dos estereótipos e exageros da pornografia, mas não da pornografia em si: pesquisas comprovam o crescente interesse feminino pelo gênero. O recém-divulgado Projeto Mosaico 2.0, do Programa de Estudos em Sexualidade da Faculdade de Medicina da USP, revelou que 44,6% das entrevistadas acessam a internet esporadicamente em busca de conteúdos eróticos. Os dados reiteram o levantamento de 2015 dos sites PornHub e RedTube, indicando que as brasileiras só perdem para as filipinas entre as que mais veem pornografia no mundo.
Para entender a relação das mulheres com a indústria do erotismo e seu impacto nos relacionamentos, Donna foi às ruas, ou, mais especificamente às mesas de bar: pedimos ao Lolla – Bar de Tapas, um dos pontos de encontro preferidos das gurias de Porto Alegre, a permissão para abordar algumas de suas clientes sobre o tema. As respostas sobre se elas já haviam deparado com alguém educado à base de filmes pornô ao longo da vida foram unânimes:
– Com certeza. Principalmente nas primeiras transas.
– Totalmente.
– Nossa! Tenho umas quantas experiências…
E elas mesmas definem, nas suas palavras, qual é o problema de um parceiro #EducadoAPornô:
– O cara acha que está fazendo tudo certo, mas está fazendo completamente errado.
– O rapaz parece uma britadeira, e você tem vontade de dizer: “Amigo, o que é que você está fazendo?”.
Uma delas explica a questão de forma menos explícita e mais conceitual:
– Bá, o meu namorado da época tinha essa hashtag. E é péssimo. Eu ri, e ele não entendia o que significava. Expliquei que às vezes achava que ele tinha uma expectativa em relação ao sexo que era muito lúdica, que não era real.
Além do problema do filme pornô se tornar uma referência para os homens, as próprias mulheres tiram conclusões equivocadas sobre o material pornográfico no início das suas vidas sexuais.
– Nós mesmas demoramos para nos dar conta de que não há nada de errado com a gente por não estarmos curtindo loucamente como as atrizes fingem curtir. E por não ter aquele corpo, aquela depilação, por não gostar do que a mulher na tela está fazendo – declara uma das entrevistadas, de 31 anos. – Lembro que minha primeira reação ao ver uma fita pornô do meu pai foi ficar preocupada com meu próprio corpo. Pensei: “Aquele peito duro apontada para a lua, ali, não vai rolar comigo”.
Mas, considerando que pornografia é tão antiga quanto o cinema, quando passou a ser um problema? No final da década passada, alguns pesquisadores começaram a ligar os pontos. Em 2009, a Universidade de Montreal tentou investigar se a exposição precoce ao material pornográfico estaria influenciando a percepção sobre o sexo dos jovens, especialmente homens. Primeiramente, houve uma questão logística: o estudo pretendia comparar um grupo de universitários consumidores de pornografia a um grupo de não consumidores e, bem, não encontrou participantes o suficiente para tornar o segundo grupo estatisticamente relevante. Resumindo, praticamente todo jovem canadense assiste à pornografia. E não temos motivos para imaginar que seja diferente no Brasil ou no Turcomenistão.
Ainda assim, o estudo canadense revelou dados interessantes: em média, os solteiros assistiam à pornografia três vezes por semana por 40 minutos. Os que tinham um relacionamento, em média, 1,7 vezes por semana por 20 minutos. Eles também raramente viam estas produções com suas namoradas e, quando o faziam, sempre decidiam o que ver. Sem contar que foram expostos à pornografia pela primeira vez aos 10 anos.
– Hoje, perguntar a um homem o que ele pensa sobre a influência do pornô na sua vida sexual equivale a perguntar a um peixe o que ele pensa sobre a água – compara Gary Wilson, professor de fisiologia da Washington University e autor de Seu cérebro sob o pornô.
Ok, homens assistem. Mas elas também. Não tanto quanto, mas bastante. A pesquisa dos sites RedTube e PornHub mostrou que 35% dos acessos no país vêm das brasileiras. No entanto, 40% do material mais pesquisado por mulheres é conteúdo lésbico.
Só lésbicas assistem à pornografia, então? Não necessariamente.
– Embora mesmo o sexo entre duas mulheres muitas vezes seja encenado de forma a só agradar ao homem, ao menos são duas mulheres preocupadas com o prazer uma da outra. Já é uma evolução em relação ao pornô heterossexual, feito do homem para o homem – declara uma das clientes do Lolla.
Em 2014, a estudante de psicologia mineira Tatiane Ferreira resolveu colocar a boca no trombone – ou melhor, no YouTube – sobre o que a incomodava nos filmes pornôs:
– Gente, quem é que inventou que salto de acrílico é sexy? E quem é que quer transar na piscina do churrasco? Custa colocar uns homens bonitos, em um quarto ajeitadinho? Deve até custar mais barato do que alugar uma piscina.
O sucesso foi tanto que a levou a consolidar um canal no YouTube, o Acidez Feminina. Hoje youtuber de profissão, Tatiane já fez outros vídeos sobre o tema. Em um deles, por exemplo, faz uma lista de erros que os filmes pornôs ensinam. Como resultado, foi convidada a apresentar o 1º Prêmio da Indústria Pornô (PIP):
– Achei ótimo. Existir um prêmio para o melhor já é uma forma de estimular as produtoras brasileiras a fazerem filmes melhores. Não acho que precisa haver toda uma reinvenção da indústria, mas, se o objetivo for agradar à mulher, precisa apresentar a ela uma cena com a qual possa se identificar.
A reclamação de Tati é recorrente. Representação quase exclusiva de fantasias masculinas, o pornô é um discurso em que as mulheres ainda estão caladas. Praticamente um conto de fadas masculino para maiores, em que o sapatinho da Cinderela é de acrílico e, bom, já deu para entender...
A diferença entre o que se vê na tela e o sexo real
O filme pornô que, na década de 1990, era uma fita roubada do quarto dos pais, hoje é um vídeo acessível a qualquer pessoa com um celular e um mínimo de curiosidade. O que antes era uma má primeira impressão sobre o sexo vira um PhD do que não fazer. O resultado é trágico inclusive para a indústria pornô.
– O mercado da pornografia sofre o mesmo problema de tantos outros depois da massificação da internet. Aquilo que já foi uma indústria com um mínimo de regulamentação, com algumas estrelas de referência, hoje é algo feito em fundo de quintal, com atrizes cada vez mais jovens fazendo coisas cada vez mais ousadas por cada vez menos dinheiro. Para que alguém se disponha a pagar por algo que há em abundância de graça na internet, se vai cada vez mais ao extremo – declara a empresária nova-iorquina Cindy Gallop, fundadora do site e plataforma Make Love Not Porn (Faça Amor, Não Pornô), que, além de alertar para as diferenças entre sexo real e pornô, incentiva pessoas reais a compartilhar suas próprias sex tapes.
O cenário que Cindy descreve é semelhante ao retratado recentemente pelo documentário Hot girls wanted, da Netflix. A produção acompanha o ciclo de três jovens, pouco acima dos 18 anos, que se aventuram na indústria pornô dos Estados Unidos. Como muitas outras, elas rapidamente esgotam suas possibilidades de novas cenas e só conseguem continuar faturando ao se sujeitarem a práticas cada vez mais degradantes. Em questão de meses, gastam quase tudo o que ganham e acabam substituídas por outras garotas recém-saídas da adolescência.
Em tempos de empoderamento feminino, a consciência da situação degradante das atrizes é mais um fator a afastar as mulheres da pornografia. Porém, há tentativas louváveis de se fazer diferente. Uma delas chamou a atenção de uma das entrevistadas do início desta reportagem.
– Eu, por exemplo, parei de consumir pornografia quando comecei a me identificar com o feminismo. Fico incomodada com a forma como as mulheres são tratadas e a idade extremamente jovem delas. Só recentemente encontrei algo diferente. Estava em um bar com temática erótica, olhei para um telão e perguntei: “Gente, o que é esse pornô hipster?”.
Era um filme da cineasta sueca Erika Lust, principal expoente hoje do pornô sob o ponto de vista feminino. Sua produtora investe naquilo que a indústria erótica em geral despreza: atores com corpos mais realistas, interagindo de forma mais afetiva e em posições e cenas que não se repetem como nos filmes tradicionais.
– O sexo pode continuar sendo sujo. Os valores é que precisam ser claros – declarou Erika em uma palestra do evento TEDx Viena.
Erika e Cindy concordam que as mulheres não devem desistir do pornô em razão de esta indústria ser hoje majoritariamente masculina. Devem é tomar seu espaço nessa narrativa. Sobre os #EducadosAPornô, o principal conselho é o diálogo. E, como todo tipo de educação, começa em casa. Sabendo que as crianças serão expostas a qualquer momento à pornografia, cabe aos pais o alerta sobre o que eles logo logo assistirão, boquiabertos.
– Pais falam para o filho como ele deve se comportar na escola, no trabalho, na mesa. Qual pai ou mãe ensina ao filho que é preciso respeitar uma mulher na cama? – questiona Cindy.
O segundo passo são os relacionamentos. Quase todas as entrevistadas nesta reportagem tiveram algum tipo de problema com um parceiro em razão da preocupação excessiva deles com a performance na cama. Nenhuma, todavia, falou com eles sobre o assunto, mesmo quando o problema era com o namorado. Justamente a partir da conclusão de que os brasileiros precisam conversar mais sobre sexo, foi lançado na semana do Dia dos Namorados o site Sexo na Real. Lá você encontra um videoclipe da iniciativa, cartazes para downloads, um kit de emojis safadinhos para WhatsApp, kits para festas e afins.
– A intenção é fazer com que as pessoas percam a vergonha de abordar o tema abertamente. Seja entre amigos, em uma festa, seja com o parceiro em uma troca de emojis, por exemplo – explica Senta Slingerland, belga radicada no Brasil e consultora do Mesa & Cadeira, iniciativa que no mês passado trouxe Cindy Gallop para uma semana de discussões sobre sexualidade.
A sexóloga Rita Nunes, que depara com a falta de diálogo entre casais diariamente em seu consultório, em Porto Alegre, faz coro:
– Nem todo diálogo precisa ser com palavras. Você pode conduzir a pessoa pela mão durante a transa. Indicar o que você realmente gosta pode ser melhor do que falar algo na hora e quebrar o clima.
Rita aponta para o fato de que o próprio direito ao prazer é uma conquista muito recente entre as mulheres. Até pouco tempo, tanto eles quanto elas obedeciam ao senso comum de que, quanto mais recatada, melhor esposa em potencial seria uma mulher. Falar abertamente sobre filmes pornô, fantasias em comum ou realidade versus ficção na cama é um fato novo. Normal que esses ponteiros não se ajustem assim tão facilmente.
O jeito é tentar. Pois quando se acertam, é maravilhoso.
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Ficha técnica
Fotos e tratamentos: Fernando Rezende
Direção: Roberta Weber
Beleza: Taís Andrade
Modelos: Gisela Sparremberger e Filipe Mello