A cena: o primeiro vinho da vida de vocês. Sentados frente a frente, cada um fala sobre as músicas favoritas, se prefere praia ou campo, se gosta de ler, se pratica esporte, se já morou em outra cidade. Sem esquecer o indefectível: qual o seu signo?
Ao fim da noite, haverá mesmo uma pista segura sobre as chances da relação? A gente pensa que sim, mas a vida mostra que nada disso interessa: nem o time que torce, nem se sabe cozinhar, nem se é de áries ou libra. Segundo o filósofo Alain de Botton, a gente deveria perguntar no primeiro encontro: qual é a sua loucura? Este seria um bom começo para avaliar se temos capacidade de segurar a onda
do outro.
Não há como negar que somos todos meio esquisitos. Quem é que tem todos os parafusos no lugar? Combinado: ninguém. Então admitir isso seria um jeito mais honesto de iniciar uma história. O cara se abre: “Costumo fazer caminhadas durante a madrugada, preciso ficar totalmente sozinho no dia do meu aniversário, tenho um histórico de assédio moral que me perturba até hoje, fico meio enfurecido quando alguém insiste em saber sobre minha infância”.
Sua vez de alertá-lo: “Não consigo ficar sozinha nem por cinco minutos, não posso engordar 200 gramas que fico sem comer por três dias, janelas abertas me causam pânico, desconfio que sou filha da minha tia”.
Achou que iria ser facinho? Praia ou campo?
O ser humano, qualquer um, é um depósito de angústias, carências, traumas, neuras. Não somos apenas o nosso gosto para cinema, o nosso jeito de vestir, o nosso prato favorito – se fôssemos apenas isso, amar seria como jogar dominó. Mas o jogo entre dois amantes é mais complexo. Aos poucos, vão aparecendo os medos secretos, a dificuldade em lidar com certas emoções, a fixação em ideias estapafúrdias, o complexo de inferioridade, a ansiedade incontrolável, as perdas pelo caminho.
Nada disso é exatamente uma loucura, mas é um pacote existencial que é colocado no colo de quem deseja se relacionar conosco. A pessoa terá que amar não apenas nosso par de olhos verdes e nossa bicicleta na garagem, mas todas as estranhezas que cultivamos e a dor que tentamos subestimar.
O amor, em si, não é difícil. O amor é fácil. Difíceis somos nós. Somos uma simpática encrenca para quem se atreve a entrar na nossa vida e ficar conosco por mais de 10 dias, prazo suficiente para lembrar que perfeição não existe.
Alguém vai desistir de amar por causa disso? Ao contrário: o desafio é estimulante. Quase competimos para ver quem é mais maníaco, quem tem mais problemas familiares, quem se irrita mais com a rotina, quem explode mais – pra tudo terminar em chamegos embaixo do lençol, onde é obrigatório se entender.
Taí a graça e a desgraça de quem resolve dividir o mesmo teto, taí a bagagem surpresa que cada um traz de casa. Qual é a sua loucura? A minha, só conto depois do segundo cálice.
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