É embaraçoso admitir, mas eu nunca tinha ouvido falar em Anthony Bourdin, prestigiado chef norte-americano que foi encontrado morto no início de junho em plena efervescência de seus 61 anos. Muitos ficaram perturbados diante do suicídio de um homem tão bem-sucedido, esquecendo que os bem-sucedidos também têm direito a uma alma atormentada. Quem era ele, afinal? Com atraso, resolvi conhecer Bourdin através da literatura, e mergulhei em Cozinha Confidencial, o livro que o projetou em 2000, onde ele abre as tampas das panelas e revela os bastidores do universo gastronômico, além de servir ao leitor, como acompanhamento, sua apimentada biografia.
Devorei o livro. Encontrei todos os ingredientes que me satisfazem. Prosa ligeira, inteligente, sarcástica. Histórias interessantes, surpreendentes, divertidas. Um ser humano que erra, se confunde, arrisca. Doses possantes de entusiasmo, obstinação, bizarrices. O conhecido ritmo dos outsiders: 10 anos em um. Tudo muito vertiginoso, com finais felizes e infelizes se revezando, tal qual a vida, que não deve ser julgada apenas pelo o que acontece no salão principal, mas também pela bagunça dos fundos.
Comida é energia e sobrevivência. Vida, a mesma coisa: energia e sobrevivência. É o que nos faz pular da cama pela manhã com vontade de se superar, e não de se repetir. O que nos estimula a aprender, aprender, aprender, até chegar ao fim do dia e se dar conta do tanto que falta ainda. A fome nunca cessa.
Em meio à porra-louquice de Bourdain, há também muito pé no chão, como na parte do livro em que ele conta o que aprendeu com seu amigo Bigfoot, um cozinheiro que era uma lenda no West Village. “Ele me ensinou que um cara que aparece para trabalhar todos os dias, que nunca liga pra dizer que está com gripe, e que faz o que disse que ia fazer, tem muito menos probabilidade de estrepar com você no fim das contas do que um cara que tem um currículo incrível mas é menos confiável na questão do horário de chegada. Habilidade se ensina. Caráter, você tem ou não. Bigfoot sabia que existem dois tipos de pessoas no mundo, aqueles que fazem o que dizem que vão fazer, e todos os demais.”
Entendida a lição, caráter passou a ser a prioridade deste chef alucinado, que quando garoto fez todas as besteiras a que tinha direito e mais algumas, até se tornar um homem respeitado em seu meio e conhecido em todo o mundo, a ponto de sua morte ter sido lamentada até por quem nunca chegou perto de um fogão. Aos 43 anos, quando escreveu Cozinha Confidencial, Bourdin era excitado, motivado, insaciável. Por que resolveu colocar fim à própria vida 18 anos depois? Por mais que se procurem razões, agora já era. Pra nosso espanto, um dia a fome pode cessar.