Quase consigo visualizar a cena. O músico e poeta Serge Gainsbourg está em Londres, o ano é 1971. Numa clínica privada, sua mulher Jane Birkin está em trabalho de parto. Ele alterna batidas aflitas na porta do quarto com idas ao bar do outro lado da rua. Até que nasce Charlotte, que, por uma série de contingências e burocracias, é proibida de ser visitada pelo pai. Quatro ou cinco dias depois, ele recebe a permissão e, após vê-la, sai em caminhada pelas ruas. É madrugada. Chove. Ele anda a esmo por duas horas, em total estado de encantamento. Mais tarde, diria sobre o episódio: “Nunca fiz um passeio mais feliz na minha vida. Naquela noite, toquei a felicidade com os dedos”.
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Pincei esse relato do ótimo livro de entrevistas Entre aspas 2, de Fernando Eichenberg. Fiquei alguns minutos pendurada nesta frase. Tocar a felicidade com os dedos.
Não costumamos ser muito delicados com a felicidade. Geralmente queremos conquistá-la, agarrá-la, retê-la e sorvê-la: verbos antropofágicos que induzem a uma dominação ansiosa e sem chance de fuga. Estamos sempre famintos dela e, quando a chance aparece, nhac. Garantimos nosso quinhão.
Você compra sua felicidade em butiques, agências de viagem, mesas de restaurantes, e depois a fotografa e posta no Instagram e no Face. Está capturada sua felicidade. Enquadrada. Sobrevivendo através da memória.
Mas não através da poesia.
A felicidade não retribui a assédios grosseiros. Não gosta de muito barulho. Tem sensibilidade a holofotes. Quem gosta de festa é a alegria. A felicidade prefere ser encontrada – e tocada – com mais discrição e leveza.
Sentada numa pedra diante de um lago, eu estava só. O ano era 1986. Foi talvez minha primeira impressão de felicidade absoluta – tudo que eu havia vivido antes eram alegrias. Naquele exato momento que não tinha nenhuma importância, numa data que não era alusiva a nada, eu entendi que a felicidade não é um alvo concreto atingido, e sim a conexão profunda que fazemos com uma emoção subitamente despertada.
Você inaugura uma nova etapa de vida. Não teme mais as interrogações. Descobre-se capaz de amar num estado de pureza plena. Você se perdoa. Você se cura. Você se reconhece. Consegue ser grato por coisas mínimas. E por bênçãos extraordinárias. Você perde o medo da vida. Você entende o que está acontecendo. Você sente a potência de um sentimento especial sem precisar segurá-lo com as mãos, sem retê-lo com as palavras, sem sofrer pelo seu inevitável desaparecimento. O simples roçar de dedos no sublime garante a eternidade do instante.