O nome dela é Mikerlande e eu a conheci na Restinga. Foi – pelo que consta – a primeira mulher a vir sozinha do Haiti para Porto Alegre. Descobriu-se grávida no meio da viagem.
Passou por toda a via crúcis que aguarda os migrantes, medo, fome, cansaço e exploração na mão de um coiote. Conseguiu o visto de refugiada e, depois de andar para lá e para cá, encontrou acolhimento na Restinga.
Mikerlande veio com a ideia de ganhar dinheiro para trazer o marido. Ela tinha 22 anos, ele já passava dos 40. Em geral é o contrário, mas Mikerlande sempre teve mais iniciativa que o companheiro.
Em Porto Príncipe, de onde veio fugida das consequências do terremoto que acabou com o passado, o presente e as perspectivas dos haitianos, ela era técnica química em uma fábrica de sabonetes. Aqui fez limpeza, trabalhou em uma oficina de costuras e cozinhou. Tão logo teve o filho, conseguiu trazer o marido com o dinheirinho que economizou. Esqueci o nome do sujeito, então vou chamá-lo, simplesmente, de Mandrião.
Mikerlande, o bebê e Mandrião foram morar em uma peça nos fundos de uma estofaria, na Restinga. Uma amiga querida ofereceu a ela o emprego de babá da sua filha. Não deu um quilo. Mandrião reclamava por ter que cuidar de Mike, o bebê. Volta e meia aparecia no trabalho da mulher para incomodar.
No Haiti ele era motorista de alguma autoridade militar, queria fazer a mesma coisa por aqui. E eu lá conhecia alguma autoridade militar para indicar o folgado? Nem para me livrar dos porões, quanto mais para conseguir uma boca.
Mandrião resolveu voltar para o Haiti. Tanto chateou que a patroa da Mikerlande comprou a passagem. No dia de embarcar, ele não tinha feito a vacina da febre amarela. Ficou. Minha amiga entubou o prejuízo.
Só sei que, não demorou muito, Mandrião convenceu Mikerlande a se mudar para São Paulo, parece que tinha conhecidos por lá. Se tocaram com o guri pequeno. Mal se instalaram e ele, enfim vacinado, voltou para o Haiti. Deixou a mulher e o filho abandonados em São Paulo.
Sete anos depois, Mikerlande e Mike agora vivem no Rio de Janeiro, em um morro de Copacabana. Ela vende produtos na praia. É uma história sofrida, igual a de tantas e tantos. Sigo ajudando os dois com uma graninha pequena por mês. Nesse Natal, Mikerlande me disse que Mike estava sem tênis. Comprei pela internet e mandei entregar na casa deles.
Tudo o que contei acima foi o preâmbulo, longo preâmbulo. A coluna mesmo começa agora.
Pela tarde do dia 22, recebi um telefonema do rapaz que estava tentando fazer a entrega. Ele me disse que o lugar era de acesso difícil e a empresa não permitia que os funcionários subissem até lá. Precisava que a Mikerlande descesse até a base do morro, na frente da UPP, a Unidade de Polícia Pacificadora.
Tentei contato e nada. Passei o celular dela para o moço, que também não teve sucesso. O tênis precisaria ser devolvido ao centro de distribuição de São Paulo e uma nova tentativa de entrega seria feita uns dias depois, deixando Mike sem o presente de Natal.
Só que não. O rapaz, chamado Ialan, esqueceu o protocolo e disse que ficaria rodando por Copacabana até Mikerlande responder. Não era obrigação dele, na correria com tantas entregas para fazer. Mas Ialan esperou Mikerlande ver as mensagens e ir até a UPP.
Mais tarde, recebi um vídeo do Mike abrindo o pacote. Visivelmente obrigado pela mãe, hoje aos sete anos e aprovado por média no colégio, ele agradecia pelo presente. As coisas que a gente obriga os filhos pequenos a fazerem.
Escrevi para o supervisor do Ialan elogiando o trabalho e a gentileza dele, mas a minha vontade era mandar um presente, uma gorjeta, algo que materializasse a minha gratidão. Às vezes, a gente esquece que um agradecimento sincero pode valer tanto quanto um Pix. Bem, não chega a tanto, mas tem valor, sim. Então aproveito para desejar aqui um 2023 em que coisas tão preciosas quanto a solidariedade e a delicadeza façam parte do nosso ano.
E querendo mandar Pix, fique à vontade.