O personagem do ator Irandhir Santos olha diretamente para a câmera e pronuncia um emocionado "É, mano velho". Parece que ele está falando com o público, mas na verdade sua conversa é com Santo, o personagem de Domingos Montagner – que responde, monossilábico e reticente: "É...". Minutos depois, é Camila Pitanga que se aproxima da câmera, quase chorando, como se fosse abraçar o próprio Santo. E o público que ainda não havia sacado o truque se dá conta: mesmo que não veja mais o rosto de Montagner, morto no último dia 15, seguirá acompanhando o destino de seu personagem.
Estamos falando de Velho Chico, a novela das nove que chega ao seu final amanhã, na RBS TV, e que, desde segunda-feira, tem intrigado o público com esse recurso usado há décadas no cinema. Na linguagem técnica, a câmera que mostra o ponto de vista de algum personagem é chamada de subjetiva. Diferentemente da câmera objetiva, que apresenta os acontecimentos com neutralidade, ela incorpora a própria visão de alguém. Acaba, invariavelmente, potencializando a imersão do espectador na trama.
Leia mais:
Cenas de Santo sem Domingos Montagner emocionam o público
Domingos Montagner revelou que queria mais tempo com a família
Tribo indígena faz homenagem a Domingos: "Ele agora é um protetor do Rio São Francisco"
Há filmes inteiros realizados dessa maneira, do noir A dama do lago (1947), de Robert Montgomery, ao lisérgico Viagem alucinante (2009), mais conhecido pelo título original Enter the void, de Gaspar Noé. Ou, para ficar em exemplos brasileiros, do pouco visto porém muito admirado Eros, o deus do amor (1981), de Walter Hugo Khouri, ao ainda mais cult Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), espécie de diário de viagem que Karim Aïnouz e Marcelo Gomes realizaram pelo sertão nordestino.
Diretor de Velho Chico, Luiz Fernando Carvalho é conhecido justamente pelas referências que costuma pinçar no cinema, muitas destas inusuais em se tratando da TV aberta brasileira. É dele o drama Lavoura arcaica (2001), aclamado pela crítica devido, em grande parte, à ousadia da direção de cena e da construção narrativa. É verdade que, na novela global, a opção de Carvalho se revela uma contingência da trágica morte de um de seus protagonistas. Na televisão, o recurso já fez barulho com o violento clipe de Smack my bitch up, da banda britânica de música eletrônica Prodigy, censurado na programação da MTV de diversos países em 1997, e com a premiada série cômica Peep show, que o Channel 4 britânico exibiu entre 2003 e 2015. No horário nobre da Globo, pode-se afirmar sem medo de errar: poucas vezes um diretor foi tão longe na inventividade formal.
Uma particularidade de Velho Chico é que, além das imagens de caráter subjetivo, há também o áudio – palavras ditas por Montagner em capítulos anteriores e até os ruídos de sua respiração estão sendo reproduzidos nas sequências apresentadas nesta semana. O chamado som subjetivo é marcante, entre outras produções, no longa de guerra Vá e veja (1985), de Elem Klimov. Um filme que, muito em função da organicidade com que incorpora o trauma do protagonista durante a II Guerra Mundial, imortalizou a figura de seu ator principal, o jovem Aleksey Kravchenko.
Velho Chico deverá ser lembrada para sempre pelas imagens (e os sons) que remetem a Domingos Montagner. Que não se esqueça do trabalho de Luiz Fernando Carvalho.