Rodrigo Lemos
Doutor em Literatura, professor do Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA
Este ano da graça de 2017 terá sido de importantes regressos nas liberdades públicas no Brasil. Não porque o Estado tenha passado alguma lei que as restrinja, mas porque a sociedade civil inebriou-se no exercício da própria força bruta.
Em maio deste ano, um grupo de cineastas retirou seus filmes do festival de cinema pernambucano Cine PE em protesto contra a simples presença, na programação, de produções como Jardim das Aflições, de Josias Teófilo (sobre o filósofo Olavo de Carvalho), e Plano Real: O Plano por Trás da História, de Rodrigo Bittencourt (que retraça os bastidores da estabilização econômica no governo Fernando Henrique Cardoso). O objetivo dos cineastas: denunciar "um discurso partidário alinhado à direita conservadora" – o que terminou por redundar na suspensão (temporária) do festival.
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Os críticos à esquerda dura não tardaram a reagir. A ex-governadora Yeda Crusius condenou, em sua página na internet, a decisão dos cineastas como um "boicote" e como uma "censura" ao filme sobre o Real, expressão de um espírito hostil ao contraditório e à democracia. Outras acusações de "boicote" e de "censura" logo apareceram em páginas de movimentos e think-tanks de direita.
São, agora, muitos desses mesmos movimentos e think-tanks direitistas nessas mesmas redes sociais que se esforçam para diferenciar cuidadosamente "boicote" e "censura" no contexto do encerramento precoce da exposição Queermuseu, no Santander Cultural. Entende-se; alguns deles foram os propulsores de uma campanha em favor do fechamento da mostra, que faria, diz-se, a apologia da zoofilia e da pedofilia, além de blasfemar contra símbolos religiosos. Tais grupos, aliás, não protestaram, crucifixos em mãos, em frente ao Santander, contra a vulgaridade das obras em questão; antes, desejaram nos poupar, a mim e a você, de constatá-la. Não é difícil imaginar, por outro lado, que os mesmíssimos grupos de esquerda radical que igualam os dois termos quanto ao caso Santander se empenhassem, quando da suspensão do Cine PE há alguns meses, em distingui-los com o zelo que a direita atualmente demonstra.
Uma tal flutuação no sentido das palavras "censura" e "boicote" é resultado desse novo fato social que é a emergência de uma sociedade da conexão total. Mesmo quando estamos dormindo, mesmo quando estamos no trabalho, a conversa não cessa. A necessidade de aprovação e o temor ao repúdio são constantes. As possibilidades de articulação para a pressão social são imensas.
As redes sociais representam o triunfo inconteste daquilo que Alexis de Tocqueville batizou, com relação à democracia americana do século 19, de tirania das maiorias. Nada indica que a vida dos dissidentes será fácil.
A censura é uma forma de controle social dos discursos, não pela discussão de seu conteúdo, mas por uma decisão unilateral quanto a seu direito mesmo de existência. A velha censura estatal, morosa e burocrática, parece-nos, hoje, obsoleta. Distinguimos nas redes sociais um instrumento mais eficiente para excitar uma multidão e jogá-la contra uma obra ou uma ideia em vista de sua desaparição. Os liberais que ainda raciocinam nos termos de uma oposição clara entre "censura" de Estado e "boicote" da sociedade civil estão despreparados intelectualmente para apreender (e combater) esse novo quadro de opressão do indivíduo por essa nova voz coletiva, anônima, imprevisível e imperiosa.
Por anos, alguns movimentos de minorias sexuais e raciais souberam organizar-se com base nesses métodos para impedir discursos que lhe desagradassem – basta ver a cultura de terror que impera nas universidades americanas contra qualquer ideia que se oponha à opinião progressista nelas dominante. O caso Santander ilustra que parte da direita soube observar esses atos não para evitá-los e instaurar um verdadeiro debate de ideias, mas para copiá-los.
Nos anos 1990, o poeta Bruno Tolentino invectivava contra algumas das principais mentes de esquerda nacional de então, que não poupavam meios (abaixo-assinados, banimentos editoriais) para condenar os adversários intelectuais ao ostracismo ao invés de refutá-los. Nossa época provê abundante material para um estudo sobre a novíssima estupidez coletiva, com a diferença de que, como um vírus, ela se espalhou para além da elite cultural e não escolhe mais ideologia.