Série foi lançada pela Netflix e gerou grande debate ao redor do mundo (Lauren Justice / The New York Times)
Seriado levantou perguntas e dúvidas para o público
No escritório de turismo da cidade, onde os funcionários estão acostumados a perguntas irônicas sobre as melhores trilhas para caminhar e ver o mar da região, a curiosidade ganhou um tom mórbido: como é possível promover o turismo em uma cidade tão corrupta? Por que alguém haveria de visitá-la?
A revolta - manifestada por telefone, e-mail e redes sociais - também invadiu a delegacia, a prefeitura e praticamente todos os órgãos envolvidos com o nome Manitowoc. Até a diretora da Sociedade Histórica do condado, Amy Meyer, passou a atender os telefonemas para que os voluntários - preparados para solucionar dúvidas mais gentis a respeito da história naval e a fama da invenção do sundae - não tenham que ouvir "gritaria, ofensas e xingamentos". Em comentário à postagem recente na página da instituição no Facebook, lê-se: "Pena que a sua história inclui a ruína da vida de dois inocentes".
O lançamento de Making a Murderer, série documental do Netflix sobre a dupla condenação de um homem da localidade, Steven Avery, mudou a vida dessa cidade às margens do Lago Michigan e de sua população de 80 mil habitantes. Dez anos atrás, quando estive aqui pela primeira vez, Avery tinha sido detido, suspeito de um crime ocorrido dias antes. Foi o passado dele, aliás, que havia me levado a Manitowoc em novembro de 2005: durante meses, Avery foi considerado símbolo de tudo o que havia de errado com o sistema judiciário do Wisconsin, tendo cumprido uma pena de 18 anos por um ataque sexual que, mais tarde, o teste de DNA provou ter sido cometido por outro homem.
Depois de ter sido solto - e entrar na justiça contra o Estado pedindo uma indenização de US$ 36 milhões por ter sido condenado injustamente -, foi acusado pelo assassinato de Teresa Halbach, uma fotógrafa de 25 anos que tinha ido fazer uma matéria para a revista Auto Trader sobre seu ferro-velho. Na época, descobri uma comunidade extremamente unida no luto pela morte de uma jovem e inúmeros defensores do acusado de queixo caído com a sequência dos acontecimentos.
Uma dupla de estudantes de Cinema de Nova York leu o artigo que fiz e dedicou os 10 anos seguintes ao que se tornou o seriado do Netflix. No fim, Avery e o sobrinho, Brendan Dassey, que na época tinha 16 anos, foram condenados, resultado que muitos espectadores acharam ser outro exemplo de um sistema judiciário viciado.
Aqui, muita gente que assistiu ao desenrolar do caso em tempo real - com cobertura maciça da imprensa - considerava o caso morto. Agora, porém, com um público muito maior conhecendo o trabalho das cineastas e questionando a culpabilidade dos condenados e a manipulação da investigação pelas autoridades, uma verdadeira enxurrada de posts nas redes sociais e telefonemas está forçando Manitowoc a reencarar o passado.
No centro da cidade, o povo normalmente falante e curioso que conheci há 10 anos não parecia mais surpreso - e nem um pouquinho satisfeito - em ver mais uma repórter. Muitos evitam comentários sobre Making a Murderer. O prefeito se negou a conceder entrevista, os comerciantes se recusaram a falar. Uma lojista falou sobre a convocação de um possível protesto e estava preocupada com a segurança.
Muita gente que viu Making a Murderer não concorda que Avery seja culpado, tanto que milhares de pessoas fizeram abaixo-assinados pedindo que o presidente Barack Obama perdoe a ele e o sobrinho - ao que a Casa Branca respondeu que o presidente não pode interferir em casos estaduais. E o governador Scott Walker há tempos jurou que não concederia indulto a ninguém enquanto estivesse no poder.
O documentário deixou o público com dúvidas atrozes: será que a condenação de Avery por violência sexual na ação civil levou a polícia local a plantar provas contra ele no segundo caso, o de homicídio? Como é possível que uma antiga amostra do sangue de Avery, encontrada no carro da vítima, tenha sido adulterada em poder das autoridades? Dassey, sendo tão novo e com faculdades intelectuais limitadas, poderia ter sido interrogado sozinho? O advogado que lhe foi nomeado estava trabalhando contra o caso? Para o promotor dos casos, Ken Kratz, o programa mostra apenas um lado da questão e omite provas importantes, incluindo o DNA de Avery na vareta sob o capô do Toyota RAV4 de Teresa encontrado no ferro-velho.
- Não é um documentário, é uma peça da defesa - afirma.
Já as diretoras, Laura Ricciardi e Moira Demos, acreditam ter mostrado os argumentos essenciais feitos pela Promotoria. Segundo elas, o objetivo foi analisar os casos de Manitowoc como janelas do sistema judiciário dos EUA:
- Sentimos muito porque sabemos que o pessoal está se manifestando das piores maneiras possíveis, postando coisas horrorosas sobre a cidade e o condado. É uma reação infeliz; nossa intenção foi gerar uma resposta construtiva e não destrutiva assim.
Avery, hoje com 53 anos, e Dassey, com 26, não viram a série. Dassey aguarda a sentença de um tribunal federal sob a alegação de que sua confissão foi obtida por coação; seu pedido de um advogado de defesa levou milhares de telespectadores a lhe mandarem cartas de apoio, conta sua representante legal do Centro de Condenações Juvenis Erradas da Universidade Northwestern, Laura Nirider:
- Pela primeira vez, ele tem a esperança de que, quando as pessoas ouvirem seu nome, não pensem num assassino, mas numa pessoa injustiçada.
E uma nova representante, Kathleen T. Zellner, famosa pelos casos de condenação injusta, já assumiu o caso de Avery e prepara o próximo passo legal.
Entenda o caso
Making a Murderer é uma série documental produzida pela Netflix e lançada em dezembro do ano passado. Dividida em 10 episódios, narra a história de Steven Avery, dono de um ferro-velho nos arredores de Manitowoc, Wisconsin, norte dos Estados Unidos, que passou 18 anos na cadeia após ser condenado injustamente por abuso sexual. Depois de solto, enquanto movia processo indenizatório contra o Estado, acabou novamente no banco dos réus, acusado de assassinar uma fotógrafa no terreno de seu ferro-velho juntamente com seu sobrinho, Brendan Dassey. A série dirigida por Laura Ricciardi e Moira Demos expõe problemas no processo que terminou com nova condenação - Avery e Dassey cumprem pena de prisão perpétua nos EUA.