– Nós somos o Motörhead e nós tocamos rock'n'roll.
Desde os primórdios, era sempre essa a saudação que o microfone, pendurado acima da linha dos olhos, reverberava em todos os shows da banda. Simples, direta e objetiva. Como a música que estourava nas caixas de som. Como a vida de seu criador, Lemmy, morto na segunda- feira, aos 70 anos, vítima de câncer.
Para além da música que ajudou a criar com seu grupo – agressiva, veloz e crua, influência direta para mais de uma geração –, o britânico Ian Fraser Kilmister era (e será) celebrado pelo que representou como personagem. Mas não um personagem inventado para dar vazão a uma fantasia: Lemmy realmente existia. Lemmy era de verdade.
Como pouquíssimos, não havia distinção entre o Lemmy no palco, debulhando seu baixo Rickenbacker enquanto cantava sobre autodestruição, relacionamentos conturbados e morte, e o Lemmy bebendo doses generosas de bourbon no Rainbow – bar que adotou como quartel-general quando se mudou para Los Angeles, nos anos 1990. A indumentária dos shows (chapéu de cowboy e botas feitas sob medida) era sua roupa do dia-a-dia e o trato com os fãs eram sempre o mesmo.
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Dave Grohl (ex-Nirvana e líder do Foo Fighters), um dos seus maiores fãs, deu a medida no documentário Lemmy (2010):
– Dane-se Keith Richards. Danem-se todos esses caras que sobreviveram aos anos 1960 e hoje estão por aí voando em jatinhos particulares, transando com supermodelos e se hospedando em hotéis caros. Sabe o que Lemmy está fazendo agora? Provavelmente bebendo Jack Daniels com Coca-Cola e gravando outro disco.
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Qualquer filme a respeito de Lemmy ou com sua participação (e foram dezenas desde os anos 1980) atesta esse caráter de autenticidade. Em muitos deles, é mostrado o pequeno apartamento em que vivia nas cercanias da metrópole americana: minúsculo, entulhado de itens do Motörhead e de memorabilia nazista (que ele vivia afirmando colecionar somente pelo design), o exato oposto do que se espera da casa de um astro do rock.
Talvez porque Lemmy nunca tenha sido um astro do rock. Na verdade, ele sequer tentou. Lemmy estava mais para um operário do rock, construindo um legado pelas próprias regras. Nos 40 anos que passou à frente do Motörhead, tudo o que fez foi aumentar o volume, tocando cada vez mais rápido, cada vez mais alto.
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Mas, nos últimos tempos, o corpo não segurava mais a onda. Shows começaram a ser cancelados, alguns em cima da hora – como no caso da mais recente passagem pelo Brasil, no primeiro semestre. Quando perguntado sobre a morte, dizia que estava tranquilo, porque não tinha arrependimentos. Em seu maior clássico, Ace of Spades, ele já declarava: "I don't wanna live forever".
Agora, em algum lugar, lá está Lemmy, microfone acima da cabeça, declarando: nós somos o Motörhead e nós tocamos rock'n'roll.