Não existe uma simples partida de futebol. Da pelada na calçada à final da Copa do Mundo, estão sempre presentes os ingredientes das jornadas épicas que forjam heróis, arranham reputações e sepultam carreiras. Apresentado na mostra Fórum do Festival de Berlim, em fevereiro passado, o longa-metragem romeno O Segundo Jogo (Al Doilea Joc, 2014), de Corneliu Porumboiu, revive um desses momentos.
Destaque da nona edição do projeto Sessão Plataforma, às 20h30min desta terça-feira, na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro, O Segundo Jogo reproduz na íntegra uma partida entre o Estrela e o Dínamo, os dois principais times de futebol da Romênia, rivais históricos, ambos fundados logo após a II Guerra e com sede na capital Bucareste.
Não há narração, ouve-se apenas as vozes do diretor e de seu pai, Adrian Porumboiu, o juiz daquele jogo que ocorreu em 3 de dezembro de 1988. Exatamente um ano depois do maior clássico do país, teria início a revolta popular que fez ruir o regime comunista comandado com mão de ferro pelo ditador Nicolae Ceausescu.
Nas lembranças de pai e filho, a partida local espelha o clima político da Romênia à época. O Estrela foi criado no ambiente militar e tem seu nome (Steua, no original) em referência ao símbolo do Exército Vermelho soviético que acabou difundido também nas esferas militares dos países-satélites da antiga URSS. O Dínamo nasceu nos corredores no Ministério do Interior e tinha como grandes apoiadores proeminentes burocratas e agentes do aparelho de vigilância estatal.
O Estrela era, em 1988, a equipe mais poderosa da Romênia e uma das grandes forças do futebol europeu. Fez história ao ganhar da Liga dos Campeões da Europa em 1986, batendo o Barcelona na final, sob o comando do jovem craque Gheorghe Hagi, que brilharia em três Copas do Mundo com a Romênia, em 1990, 1994 e 1998.
Em meio à reprodução numa fita VHS da partida, disputada sob uma rigorosa nevasca, Adrian fala das pressões que sofria antes de entrar em campo, comenta algumas jogadas, destaca alguns jogadores. Diante das terríveis condições climáticas, em que mal se consegue ver a bola laranja cruzando um tapete branco praticamente sem marcações, o pai do diretor garante que deu condições de jogo por que "havia visibilidade suficiente".
O filme não explica ao espectador o contexto daquele jogo. Não era uma decisão, pois ao longo da transmissão é informado o resultado das outras partidas da rodada. O Wikipédia diz que esse foi o segundo duelo do ano entre o Estrela (de vermelho) e Dínamo (de branco no primeiro tempo e de azul no segundo). Em junho, ficaram no 3 a 3. Assim, o "segundo jogo" do título pode ter tanto o significado literal quanto se referir ao outro jogo que estava sendo jogado nos bastidores - o exército acabaria chancelando o levante popular que levou culminou na execução de Ceausescu.
Se a conversa entre pai e filho colocam a narrativa em um plano íntimo e histórico um tanto distante do espectador, o filme seduz, sobretudo os fãs de futebol, pelo ar etéreo e de progressiva tensão que imprime à batalha campal. A neve constante combinada com o granulado da reprodução faz O Segundo Jogo parecer um sonho - ou pesadelo - revisto em flashback.
A horas tantas, o resultado já não importa. A peleia é bastante dura. De um lado, o futebol arte do Estrela. Do outro, o estilo "voluntarioso" do Dínamo. Carrinhos apavorantes, solas de rachar bola e a canela alheia pontuam jogadas de grande técnica que tentam empurrar a bola para dentro do gol de pé em pé.
Corneliu Porumboiu destacou-se internacionalmente em filmes premiados como a comédia A Leste de Bucareste (2006) e o drama Polícia, Adjetivo (2009), que mostraram como a Romênia reaprendeu a caminhar por conta própria sem o peso da era Ceausescu, mas sempre sob a sombra do imenso aparelho burocrático que sobreviveu para atravancar os passos dos cidadãos em tempos de democracia.
O Segundo Jogo pode ser visto como a preliminar do novo país que estava por nascer sob o grito daqueles torcedores encarangados de frio que lotavam o estádio e que acabaram se unindo nas ruas para comemorar uma conquista tão grande e emocionante quanto bater o maior rival de goleada.
A sessão tem ingresso a R$ 3, com reprise no sábado, às 18h. Um dos mais importantes projetos cinéfilos realizados na Capital, a Sessão Plataforma exibe a cada mês filmes inéditos no circuito comercial realizados por diretores com perfil autoral reconhecidos nos mais importantes festivais internacionais.