Klauss Vianna (1928 - 1992) costumava dizer que, enquanto não se tem o ser, não se tem o bailarino. Ele e Angel Vianna foram os responsáveis por criar e consolidar mais do que a ponte entre o balé clássico e a dança contemporânea: o caminho brasileiro que leva à transversalidade da dança com as artes, em especial o teatro.
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A coluna deve ser flexível; os pés, descalços. Foi com este intuito que estudaram anatomia: para dispor o corpo como uma escritura da própria alma. Não mais o corpo inerte, a reboque da emoção, mas propiciar o domínio da sensibilidade, liberado da tensão, a fim de torná-lo movimento expressivo. Estas características, o processo de permanente transformação somado à força catalizadora, foram o que notabilizaram a técnica de Klauss Vianna.
Qualquer Coisa a Gente Muda, espetáculo apresentado na sexta-feira e no sábado no Teatro do Museu do Trabalho, dentro da programação do 9 º Festival Palco Giratório Sesc/POA, se propõe a mostrar uma síntese desta trajetória. No cenário, estão a mesa, a cadeira e a bailarina Maria Alice Poppe à espera. Ela ensaia seus primeiros passos, tenta sentar na cadeira que consigna as mãos e o suor de quem a talhou, a energia da árvore de que foi extraída, as fadigas que ela poupou. Mas a cadeira não a retém. É só espargimento e silêncio.
Entra a mestra Angel Vianna. Seu olhar é atento, mas deixa-se levar por tudo aquilo que o faz ressoar. Esta ressonância, espaço interior das correspondências, privilegia o fetichismo do objeto porque considera toda a coisa abstraída de seu contexto, como o pintor catalão Tàpies propõe, o "jogo do olhar" a fim de extrair da dor a melhora na qualidade de vida. A mestra está diante do espelho inexistente. O braço é staccato. O som do piano, aparentemente das aulas de balé, é a pista que conduz ao preenchimento da sala com a respiração do fole, sentida nos graves do acordeom.
A mesa muda de posição, uma braçada impossível de flores brancas do campo é servida. Está presente o passado, Minas Gerais, seus parceiros que já partiram. A generosidade torna cúmplices criadora e criatura. Nos mínimos gestos, coreografam o desconexo.
Maria Alice Poppe é certamente das maiores expressões da sua geração. A maleabilidade dos seus pés traduz um símbolo desta escola. Eles não pisam no palco, é como se palmilhassem vagamente cada canto de uma geografia invisível, como o quer Drummond. João Saldanha, o diretor-coreógrafo do espetáculo, deixa clara a sutiliza deste diálogo, com a pertinência do conhecimento. Fica, no entanto, o desejo de uma encenação mais compatível à qualidade do que é dançado e com a grandeza daquelas que estão em cena.
* Caco Coelho é diretor e pesquisador teatral
Dança
Opinião: Angel Vianna e Maria Alice Poppe coreografam o desconexo
"Qualquer Coisa a Gente Muda" esteve em cartaz em Porto Alegre no 9º Festival Palco Giratório
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