Raphael Minder
Madrid - Não faz muito tempo Florencio Sanchidrián mostrou a uma classe de vinte alunos do curso de hotelaria por que acredita que 50 por cento do valor de uma peça de presunto depende de como ela é fatiada.
E começou tirando uma lasca de mais ou menos 5 cm, fina feito papel; depois, levantou a faca e girou o pulso de maneira a enrolá-la na ponta da lâmina. A seguir, a fez escorregar de cima para baixo "devagar, para poder absorver todos os outros sabores presentes ali", ensinou.
Finalmente, entusiasmadíssimo, disse à jovem plateia: "Agora tenho aqui uma fatia que não tem nada a ver com o corte normal; de fato, ela me lembra de que Deus existe."
Sanchidrián, 52 anos, usa uma bandana para impedir que o cabelo caia na comida, é mais ou menos o astro do rock do presunto ibérico - pelo menos é pago como tal, cobrando quase US$4 mil para cortar uma peça, tarefa que leva uma hora e meia para completar.
Ele já fatiou presunto na recepção do Oscar, em festas particulares em Hollywood e em cassinos de Las Vegas e Macau. Ao longo do ano, acompanha o circuito da Fórmula Um, de Nova Déli a Austin, no Texas, cortando presunto para convidados VIP nos paddocks e lounges das maiores equipes. Papas e chefes de Estado, incluindo George W. Bush, já provaram o presunto cortado por Sanchidrián em visita a Espanha.
Ele se considera "um embaixador do jamón", cuja missão é tornar conhecido mundialmente um produto muito apreciado na Espanha, país onde cada pessoa, em média, consome 4,5 kg/ano, o que o torna um dos maiores produtores de carne de porco do mundo, atrás apenas da China, dos EUA e da Alemanha.
Uma única peça do presunto mais fino - pesando de 7,7 a 8,2 kg, feito a partir da carne do porco preto ibérico - pode chegar a custar US$500. Os animais são criados soltos, o que ajuda a distribuir a gordura uniformemente pelo corpo, e alimentados com bolotas, o que dá à sua carne, segundo os especialistas, um sabor adocicado de nozes incomparável. É protegido por quatro certificados de origem das diferentes províncias onde os suínos são criados.
Porém, a exportação de cerca de vinte mil toneladas/ano da iguaria foi reduzida devido às leis de vigilância sanitária de vários países, incluindo os EUA, onde o presunto ibérico era proibido até cinco anos atrás devido à preocupação com a gripe suína e os métodos tradicionais de cura. Desde então, apenas dois abatedouros estão autorizados a exportar para os norte-americanos.
Para os espanhóis, que tratam e servem a melhor carne de porco nesse formato há gerações, essas restrições são exageradas. Só que não ajuda muito saber que a cura pode chegar a durar até quatro anos e é feita no osso, mantendo-se a pata intacta porque ela "melhora o sabor".
Para os puristas, as máquinas fatiadoras estão totalmente fora de questão porque o calor gerado por elas pode alterar o gosto e derreter a gordura, essencial para a experiência da degustação.
E é aí que entram os cortadores como Sanchidrián, que considera seu trabalho uma "arte criativa" que combina "contar e cortar". Conforme vai fatiando, ele descreve ao público todos os detalhes da criação do porco, exatamente como o sommelier fala da safra de uma vinícola.
"Saibam que a carne desse animal tem um sabor tão bom porque ele caminha centenas de quilômetros, faz a siesta ao ar livre e admira os crepúsculos mais belos da Espanha", disse ele em uma reunião de executivos a convite da Citrix Systems, uma empresa norte-americana de software. Algumas horas antes, Sanchidrián lembrou seus alunos que "o vermelho é a cor da sorte dos chineses e da paixão para os ocidentais - e o presunto oferece todos os tons da cor, como um bom vinho."
Sanchidrián não aprendeu sua técnica na sala de aula. Na verdade, começou a fatiar presunto há trinta anos, quando ainda era garçom em um restaurante de Barcelona, porque o cortador oficial ficou doente. "O gerente pediu para eu assumir a função e logo de cara se tornou algo tão natural que a troca foi permanente", conta.
Ao se preparar para a função, Sanchidrián encara a peça de presunto quase como se fosse um toureiro ensaiando o golpe final. Entretanto, tamanho exibicionismo incomoda os membros mais tradicionais da comunidade de cortadores espanhóis, que inclui cerca de cem profissionais.
"Eu admiro Florencio como colega, mas o protagonista do show deve ser o presunto e não o cortador", diz José Ángel Muñoz, cortador-chefe da fabricante Arturo Sánchez.
O faturamento de Sanchidrián permitiu que ele abrisse seu próprio restaurante em Madri, mas, em geral, a carreira continua relativamente desconhecida e subdesenvolvida, mesmo na Espanha, segundo os especialistas. Os mais mal remunerados ganham apenas US$250 para fatiar uma peça, o que os força a assumir outras atividades para sobreviver.
"Não há um evento ou festa decente na Espanha em que não se sirva presunto, mas isso não significa que muita gente possa viver exclusivamente do ofício, como Florencio", afirma Rafael Salcedo Merchante, professor de uma escola de Hotelaria em Madri.
Para Mario Sandoval, chef do Coque, restaurante estrelado na periferia de Madri, a gastronomia espanhola está ganhando grande reconhecimento internacional. "O presunto é o nosso produto mais representativo, o que deve valorizar o presunto ibérico ainda mais."
Alejandro Vilriales, um estudante de 19 anos, disse que achou a aula de Sanchidrián "uma verdadeira fonte de inspiração". "Eu gostaria muito de me tornar um grande cortador e poder viajar o mundo como ele. E se você viaja com o presunto, está levando um pedaço da Espanha, o que significa que nunca terá saudade de casa."