Pouco depois das 9h da última quarta-feira, a artista e educadora Carina Sehn liga o microfone em um amplificador e posiciona o equipamento na área externa do Centro POP - posto de atendimento a pessoas em situação de rua localizado na Cidade Baixa, em Porto Alegre.
Assim que o sinal é ligado, um frequentador do Centro toma o microfone para dar início aos trabalhos. Lembra que muitos ficaram de fora das atividades daquela manhã devido ao limite de participantes. Está começando uma oficina de rádio - uma das atividades culturais realizadas no local, que oferece ainda aulas de cinema e fotografia.
O ambiente é dispersivo. Com os assentos ainda livres, Carina convida cada um pelo nome a se aproximar. Fazendo as vezes de apresentadora, ensaia o programa Memória da Rua, realizado como se estivesse sendo transmitido ao vivo (há um projeto para colocar a rádio no ar na internet). Pede a todos para que contem histórias de seu cotidiano.
De início encabulados, os integrantes do grupo começam a relatar episódios de vidas duras como o asfalto onde dormem. São frequentes os casos de violência e de descaso, tanto da sociedade quanto do poder público. Cobram respeito, inclusive da polícia.
- Se quiserem ter respeito conosco, eles têm que mostrar respeito antes, e não chegar batendo e chutando as nossas coisas - diz uma participante.
O que há de singular nessa experiência é que eles se tornam narradores da própria história. Um exemplo disso é a oficina de fotografia. Depois de terem aulas sobre os fundamentos técnicos, recebem câmeras descartáveis com uma proposta específica: registrar, em suas peregrinações, cenas nas quais usualmente não prestariam atenção.
Aparecem imagens de um casal de namorados em um parque, um churrasco em uma grelha ao ar livre, uma cena bucólica às margens do Guaíba. A vida, por vezes, parece mais doce pelas lentes da câmera.
Um dos fotógrafos é Cristian Rafael Vieira, 30 anos, autor da imagem destacada nesta página. É um autorretrato que ressalta outro de seus talentos: a dança. Desde os 12 anos, Vieira é b-boy, como são chamados os dançarinos do gênero de dança de rua conhecido como break.
Vieira é de Montenegro e está em Porto Alegre há cerca de dois anos. Costuma dormir na praça em frente ao colégio Júlio de Castilhos porque "tem segurança". Mesmo assim, conta que certa vez foi espancado por dois sujeitos. O que mudou desde que começou a se envolver com a arte nas oficinas?
- Minha autoestima - responde.
Assista a vídeo produzido por Cristian Rafael Vieira no Circo da Cultura
Ação cultural não pode ser isolada
Cristian não é o único participante com experiências prévias. Michael Sérgio dos Santos, 29 anos, toca pagode, sertanejo e música gospel no violão. Milena de Oliveira Fagundes, 21 anos, toca violão e teclado desde a infância.
Santos destaca que a música é uma forma de se concentrar em atividades produtivas, longe das drogas:
- Agora, quando tu vês, passou um dia inteiro sem drogas.
Para Milena, que frequenta atividades de dança e teatro, esta é uma oportunidade para reverter estereótipos:
- Todo mundo tem um conceito de que quem mora na rua não faz nada da vida ou é ladrão. Não é bem assim. Tem pessoas que trabalham, que puxam carrinho (coletam material reciclável para revender).
As atividades são parte do projeto Circo da Cultura, em funcionamento desde 2011, por meio de uma parceria entre a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), a Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre e a Associação Rede do Circo. Há ações para crianças, adolescentes, jovens e adultos.
Então: a arte pode chegar a transformar a vida das pessoas em situação de rua? Luciana Paz, coordenadora do Circo da Cultura, afirma que sim, desde que não seja uma ação isolada:
- Apenas a nossa ação cultural não é efetiva. Mas, somada a toda a rede de atendimento, sim.
Pensando sobre o presente
Viver de arte é o plano de Cícero Adão Gomes de Almeida, 40 anos, participante de atividades do Circo da Cultura como oficinas de rádio e fotografia. Cícero criou a imagem dos carrinhos de supermercado que ilustra esta página. A fotografia, segundo ele, tornou-se uma ferramenta de autoaceitação das pessoas em situação de rua. Conta que, no início, a maioria não gostava de aparecer nas imagens por medo da opinião alheia.
- Tínhamos receio das pessoas dizerem para alguém da nossa família que nos viram com um saco nas costas e um carrinho de supermercado. Para elas, pode ser uma vergonha. Para nós, é uma forma de sobrevivência.
Desse exercício de retratar o próprio cotidiano, vieram as imagens de uma partida de futebol. Cícero é um dos personagens que aparecem em uma quadra perto do ginásio Tesourinha, em pose que lembra as fotos realizadas pelas equipes profissionais. Quem ganhou a partida?
- Nem lembro. Não jogamos para ganhar. É chapeuzinho, janelinha... É quem faz melhor para o outro dar risada. Não importa quem ganha e quem perde. O importante é estarmos juntos. Um dia, vamos jogar dentro do Tesourinha, contra a seleção brasileira de futebol de salão, contra o Falcão (risos).
Cícero diz que seu projeto é batalhar por uma bolsa de estudos que o permita trabalhar com fotografia ou com vídeo. Enquanto isso, dorme na Praça da Matriz.
Assiduidade é o desafio
Um dos desafios do projeto Circo da Cultura é enfrentar o problema da falta de assiduidade. Como a adesão às oficinas é voluntária, é comum que o grupo de participantes seja consideravelmente diferente a cada vez. Assim, os encontros devem ser planejados em suas particularidades. Para estimular a identificação dos usuários com o espaço do Centro POP, a artista Carina Sehn criou um mural com fotos dos participantes. A ideia é "colocar o homem frente ao homem, uma premissa antiga do teatro", segundo ela:
- Eles costumam pensar muito sobre o passado e o futuro, mas não tanto sobre o presente. A ideia é que possam olhar para si mesmos.
O artista e educador Tiago Expinho, que ministra aulas de cinema no Centro POP, lembra que a arte é, acima de tudo, uma ferramenta para enfrentar a realidade da vida. E um meio de sustento em si mesmo, como deseja Almeida.
- A arte entra na vida deles como uma escolha. É possível viver de arte? Sim, eu vivo disso - diz Expinho.
Como ajudar
> Doações para as ações culturais, como instrumentos musicais, figurinos, livros, CDs, câmeras, computadores, ingressos para espetáculos artísticos, entre outros, podem ser feitas pelo e-mail circodacultura@gmail.com ou pelo telefone (51) 3289-8061.
> Também é possível doar objetos como roupas, calçados, brinquedos e artigos de higiene e de beleza para o Centro POP por meio do número (51) 3221-8578.
> Informações sobre o Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua de Porto Alegre podem ser obtidas no site www.portoalegre.rs.gov.br/fasc
> Notícias sobre as ações para crianças estão em www.circodaculturaunidademovel.blogspot.com.br.