
Antes de mais nada, um aviso: esta não é uma lista de melhores discos de 2023. É uma seleção de alguns dos títulos que, ao longo do ano, me surpreenderam por diversos motivos, explicados nos próximos parágrafos.
São álbuns de diferentes gêneros musicais, de artistas do Brasil e do Exterior, que têm duas coisas em comum: merecem ser conhecidos por um público mais amplo e são extremamente prazerosos de se ouvir.
Vamos a eles.

Iiro Rantala, "Veneziana"
O finlandês Iiro Rantala é um dos meus pianistas de jazz preferidos da atualidade. Quase anônimo no Brasil (já escrevi sobre ele aqui), cria música inventiva e ao mesmo tempo acessível. Provocado pelo fundador do selo ACT, Siggi Loch, a compor um trabalho inspirado na história musical de Veneza, apareceu com o álbum Veneziana, que mistura jazz e música de concerto. O detalhe é que ele nunca esteve na encantadora (e superlotada) cidade italiana: baseou-se 100% na imaginação. Mas Gondol Ride to St. Mark’s Square, por exemplo, soa exatamente como eu imaginaria a trilha sonora perfeita — doce a nostálgica — para um passeio de gôndola.
Acompanhado de músicos da Filarmônica de Berlim e de seu singular senso de humor, Rantala tece, ao longo do disco, tramas instrumentais sobre compositores e outras figuras históricas que não é possível destrinchar na plenitude apenas lendo os títulos das faixas. Embora a música já satisfaça o espírito, se você tiver a oportunidade, leia os comentários no encarte (dica: procure aqui, na aba Booklet, em inglês).
Destaques: Gondol Ride to St. Mark’s Square, Vivaldi’s ADHD, Morte a Venezia.

Mohini Dey, "Mohini Dey"
Ouvindo displicentemente uma playlist de novidades do jazz, me endireitei no sofá aos primeiros segundos de Introverted Soul, umas das faixas do disco de estreia da baixista indiana Mohini Dey. É rock? Jazz? Funk? R&B? Sim, tudo isso e também música do sul da Índia. Nada neste amálgama de tradições parece forçado. Temperando suas criações com muito virtuosismo, Mohini chega mostrando que tem dicção própria. Do início ao fim, o álbum é enérgico, inesperado, quase não te deixa respirar.
Aos 27 anos, Mohini traz a experiência de quem trabalha no ramo desde os nove — é filha do baixista de fusion Sujoy Dey, de onde vem seu gosto pelo encontro de estilos, e da cantora Romia Dey. Já tocou com o compositor de Bollywood A. R. Rahman, com o ás da guitarra Steve Vai e com o tecladista do Dream Theater, Jordan Rudess. Se você se interessou pela referência à música do sul da Índia, aqui vai mais uma informação: em alguns momentos de Introverted Soul, ela canta sons que parecem scatting, o tradicional improviso vocal do jazz, mas na verdade é konnakol, técnica indiana de emitir sílabas percussivas.
Destaques: Introverted Soul, Bombay Bong, Kick’B’ass.

Ney Fialkow e Vagner Cunha, "Prelúdios para Piano, Livro II"
Se você se entedia com a mera leitura do título deste disco, sugiro que simplesmente comece a ouvi-lo. Deixe-se envolver pelo turbilhão de notas de Correnteza, a música de abertura. Siga na ordem em que as faixas estão dispostas, experimentando as contrastantes sensações provocadas pelas composições de Vagner Cunha e pela interpretação do pianista Ney Fialkow.
Prelúdios, na linguagem da música de concerto, são obras geralmente curtas que servem de introdução a outras mais longas. Também podem ser criadas como atração principal, como é o caso deste álbum. Mas você não precisa de teoria para extrair o melhor da audição. Pense em cada faixa como a trilha sonora de uma história. Quem são os personagens? O que está acontecendo com eles? Você se identifica com alguma destas emoções? Vagner é um compositor contemporâneo que não escreve para uma panelinha de iniciados, mas para qualquer um, inclusive para quem pensa que "esse negócio de música erudita não é pra mim". Também está disponível nas plataformas de áudio a primeira parte destes prelúdios, de 2018, gravada por André Carrara.
Destaques: Correnteza, Toccata, Canção II.

Três Marias, "Não se Cala"
A identidade da música do Rio Grande do Sul frequentemente passa por aquilo que nos distingue do resto do Brasil. O disco de estreia das Três Marias, grupo que completa 10 anos de atividade, vai por outro caminho: nos conecta com o resto do país e com nossa herança africana. Isso tem a ver com a própria origem do grupo, que nasceu em Brasília, como trio, circulou por aí e depois se radicou em Porto Alegre, onde virou quinteto (o nome foi preservado por fazer referência ao conjunto de estrelas homônimo), com Dessa Ferreira (que lançou em 2023 o álbum solo Pulso), Gutcha Ramil, Pâmela Amaro, Tamiris Duarte e Thayan Martins.
Valorizando as manifestações afro-brasileiras, Não se Cala é um álbum que reverencia os orixás, que fala de mulheres insubmissas e que cria uma ponte entre passado e presente por meio de parcerias com mestres da cultura popular de diferentes regiões, como Mestre Paraquedas. Ao longo da generosa 1 hora e 13 minutos de duração, tem samba, forró, coco, ijexá, jongo e muito mais. Além dos discursos poderosos destas novas e antigas canções, que vibram ao som da percussão, há música boa, muito boa.
Destaques: Banto-Yorubá, Santo Festeiro, No Agora.

Yantó, "Sítio Arqueológico"
Não é difícil encontrar um ótimo disco. Mas é difícil encontrar um ótimo disco que você tem vontade de ouvir de novo assim que termina. Brasileiro e moderno, Sítio Arqueológico é um desses achados. É impressionante a quantidade de ideias que Yantó consegue encapsular em pouco mais de 36 minutos neste primeiro álbum desde que mudou de nome artístico, em 2017. Antes, ele se apresentava como Lineker, designação de batismo (não confundir com a Liniker, com “i” no meio, conhecida pelo trabalho com os Caramelows).
Como o título do trabalho sugere, Yantó escava a história do país para reinterpretá-la em chave crítica, mas nunca pedante. Em arranjos que combinam sons orgânicos e eletrônicos, com destaque para a batucada do samba e a percussão de matriz africana, suas composições — algumas em parceria — são repletas de melodias irresistíveis, mesmo que as letras falem de temas duros, como as feridas ainda não cicatrizadas do Brasil: racismo, homofobia, injustiça social. Será que Ele É? transforma uma tradicional e preconceituosa marchinha de Carnaval em canto de aceitação. Com ares épicos, O Sangue sintetiza nossa história de escravidão.
Destaques: Abre Alas, Ladeiras, O Sangue.