Não é comum, por motivos óbvios, que uma editora se disponha a lançar a obra completa de um autor que ainda está vivo – bem como não é usual que, lançada, essa obra caiba em um único volume de menos de 500 páginas, e com espaço ainda para textos inéditos. Mas Raduan Nassar nunca foi um fenômeno comum, e sim um autor desconcertante que em dois romances e alguns contos cravou seu lugar na história da literatura brasileira – e então silenciou.
Acompanhando um recente interesse internacional na obra do autor, a Companhia está lançando em um único volume Lavoura arcaica (1975), Um copo de cólera (1978), a coletânea de contos Menina a caminho (lançada em 1997, mas reunindo histórias escritas e publicadas nos anos 1960 e 70). Fazem parte também da compilação dois contos inéditos, O velho e Monsenhores, e um ensaio sobre a imagem de inferioridade que o Brasil costuma projetar diante do que é estrangeiro. E nenhum desses novos textos representa uma esperança de que Nassar tenha retomado sua produção, porque de novidade só há mesmo a edição. Os dois contos são ainda mais antigos do que qualquer coisa que o autor tenha publicado, e foram redigidos no fim dos anos 1950. O ensaio saiu originalmente numa revista alemã em 1981. Recluso no interior de São Paulo, Raduan Nassar mantém seu silêncio.
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Um silêncio que, no entanto, insiste em ser quebrado, não por ele, mas por outros, mostrando que o impacto de sua obra se mantém imune à passagem do tempo. Neste ano, a tradução inglesa recentemente publicada para Um copo de cólera (A cup of rage, traduzido por Stefan Tobler) foi incluída na "lista longa" de semifinalistas para a edição internacional do Man Booker Prize, o mais prestigiado prêmio literário do Reino Unido, ao lado de obras de autores como os vencedores do Nobel Kenzaburo Oe e Orhan Pamuk. A indicação coroou uma recepção de gala da obra do autor em língua inglesa.
"Você pode achar que um livro tão curto dificilmente seria digno desse nome, mas ele acomoda mais força em suas escassas 47 páginas do que a maioria dos livros consegue com cinco ou 10 vezes mais espaço", disse Nicholas Lezard, no jornal The Gardian. O tradutor Stefan Tobler comparou, no Independent, seu tratamento franco e incômodo da violência subterrânea nas relações sociais ao do chileno Roberto Bolaño. E, também neste ano, Nassar foi anunciado como o vencedor do Prêmio Camões, dado uma vez por ano a um autor de língua portuguesa com obra significativa para o idioma – e que já contemplou nomes como Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Saramago, Lobo Antunes e Mia Couto.
Com isso, a obra de Nassar, que nunca esteve propriamente fora de catálogo, foi reunida agora em um único compêndio de capa dura. Os dois romances – ou um romance e uma novela, se você liga para essas distinções mais técnicas – tornaram-se mais conhecidos do grande público após as adaptações cinematográficas, uma realizada em 1999 (Um copo de cólera) e outra em 2004 (Lavoura arcaica). Esta última é a história do atormentado André, criado no seio de uma rígida família de origem libanesa no interior rural do Brasil, e que, ao desenvolver uma paixão obsessiva pela própria irmã, perverte o caráter fechado imposto à unidade familiar por seu pai dominador. Um copo de cólera é um romance em que capítulos escritos em uma única sentença narram a gradual escalada da violência numa discussão entre um casal por um motivo aparentemente banal.
São duas obras escritas por um mestre da forma e mudaram consideravelmente o panorama da literatura brasileira quando publicadas. A reunião de ambas com o material menos conhecido, contudo, permite um bem-vindo olhar de conjunto para a regularidade de Nassar, esculpindo gemas mesmo na forma breve. Os dois contos inéditos, embora não tenham a precisão bem acabada das obras-primas, já mostram um Nassar dotado de grande força como autor. O velho, apesar de muito calcado em diálogos, já mostra a força com que o autor sabe extrair grandes imagens na descrição do cotidiano. Monsenhores, dedicado a Augusto Massi, é um primeiro exercício na radicalidade da prosa poética e urgente que viria a desaguar nos romances. E algumas de suas conclusões sobre o "milagre brasileiro" no ensaio, embora relativas ao período da ditadura, mostram-se prescientes sobre as recentes ilusões a respeito do "despertar do gigante":
"Dizem que o milagre acabou, mas o que não acabou e nem vai acabar é o sonho de grandeza: haverá com certeza novas arrancadas."
OBRA COMPLETA
De Raduan Nassar
Companhia das Letras, 464 páginas, R$ 74,90.
Cotação: 5 de 5