A noite desta quinta-feira (15) foi de grandes emoções para o público que lotou a Cinemateca Capitólio para assistir à première de Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor. O documentário resgata as origens do artista, o legado musical e ressalta a contribuição artística do ilustre compositor porto-alegrense.
As suas canções, que ultrapassam gerações, tomaram conta da sala de cinema, recheada de convidados, amigos e familiares do músico, que olhavam hipnotizados para a história de Lupi na telona, 48 anos depois de sua morte. Dirigido pelo paulista Alfredo Manevy e realizado em uma coprodução da Plural Filmes e do Canal Curta!, o filme de 92 minutos de duração conta com um vasto material formado por arquivos de jornais, entrevistas do compositor em programas de TV da época e depoimentos de personalidades, parentes e artistas, que falam sobre a obra do gaúcho.
Entre os nomes entrevistados para a obra, estão Gilberto Gil, Arthur de Faria, Juarez Fonseca, Tânia Carvalho e Ricardo Chaves — além de Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho, herdeiro do sambista.
— Ao longo dos anos, desde que o pai nos deixou, foi uma obra da qual eu sempre questionei e perquiri para que ela fosse realizada, porque o registro do cinema se fará perpétuo. Se esse é o início de um novo caminho, com certeza nós teremos que caminhar mais um longo pedaço, já que nós, hoje, estamos 48 anos atrasados. Então, vamos fazer com que esses 48 anos se tornem só 4 minutos e 8 segundos, para que nós possamos continuar fazendo — diz o filho de Lupi, presente no evento.
Na projeção, ícones da Tropicália, como Caetano Veloso e Gil, aparecem em imagens históricas do filme, ao lado de Lupi, em encontro entre os três em Porto Alegre. Gal Costa, falecida recentemente, também protagoniza um momento emocionante no documentário: tocando violão e com uma flor no cabelo, ela aparece interpretando a música Volta, criada pelo autor gaúcho. Quem também tem destaque é Elza Soares, que regravou Se Acaso Você Chegasse, primeiro grande sucesso de Lupicínio.
Esta última composição citada, por sinal, chegou a aparecer em Dançarina Loura, musical de Hollywood, que teve justamente a trilha sonora indicada ao Oscar, em 1945. Porém, além de não ter sido consultado sobre a utilização da música, o autor não recebeu direitos autorais. A situação mudou quando os versos de Lupi foram cantados por Linda Batista, que gravou Vingança. E, por conta deste sucesso, a artista realizou uma turnê internacional, que rendeu retorno financeiro para o gaúcho, que comprou, segundo ele próprio, o carro mais bonito e moderno de Porto Alegre. Esta e outras histórias estão no filme.
Entre depoimentos e resgates históricos, as inserções das entrevistas do passado de Lupicínio vão revelando o homem por trás do músico que, hoje, é amplamente reconhecido. Sempre espirituoso, o artista vai contando as peripécias nas noitadas, os amores e como as canções eram compostas quase que instantaneamente em que vivia cada nova experiência — e, claro, depois de uns goles de whisky.
No filme, estão presentes as principais características de Lupi: boêmio, namorador e apaixonado pelo Grêmio — inclusive, é resgatada a história de como ele compôs a autoria do hino oficial do time, tendo a primeira versão pronta em menos de 24 horas. Mas, também, situa o artista dentro do contexto realidade em que viveu, abordando, inclusive, a origem africana, os antepassados escravizados e até casos de racismo sofridos pelo autor.
— A vida dele dava uma série de mais de 30 episódios de tanta coisa importante que ele fez para a música brasileira. Foi muito difícil escolher o que entrou no filme, mas a gente teve que encontrar critérios para escolher momentos muito significativos da vida dele, para formar uma trajetória, uma contribuição que ficasse clara para um espectador que conhece o Lupicínio que, de repente, queria alguma informação nova, e também para quem não conhece, que ouviu as músicas dele na boca de grandes intérpretes e que, no filme, encontra uma certa introdução a ele — explica o diretor da obra.
Carlos Gerbase, que esteve na sessão para prestigiar a trajetória de Lupicínio Rodrigues em seu habitat, o cinema, explica que o autor tinha a capacidade de escrever letras simples, em termos de estrutura e de rima, mas que falavam de sentimentos humanos e complexos. Para o cineasta, só um grande artista tem essa capacidade.
— Na simplicidade das letras ele, conseguia fazer uma coisa diferente, única. Lupicínio é um dos, se não for o maior, artista da música que esse Estado já produziu. E isso eu acho que é incontestável. Ele é um gaúcho, negro, e que atingiu o Brasil inteiro nas décadas de 1940 e 1950, através do rádio, e depois foi recuperado pelos grandes nomes da MPB, a partir dos anos de 1970 e 1980 — destaca Gerbase.
Durante a projeção, que acompanha uma linha do tempo da vida do compositor, desde o seu nascimento, em 16 de setembro de 1914, no bairro Ilhota, em uma família de 21 filhos, até o seu falecimento, aos 59 anos, em agosto de 1974, fica evidente como funcionava a mente de um dos gênios da música do país, que conseguiu entregar obras que perduram até hoje.
— A obra do pai tem a singularidade de ser filosófica. Ela tem um caminhar muito singelo, porque trata da alma do ser humano, da dor do amor, daquilo que o sujeito tem de maior dentro de si, que é o coração, os sentimentos e a alma. E o pai conseguiu, dentro deste modesto instrumento que ele construiu, ser um grande cirurgião cósmico, capaz de identificar as células que estavam sofrendo, doídas, petrificadas na alma do ser pelo o sofrimento, pela dor da cornitude ou do amor. Ele conseguia identificá-las e transformá-las em verso — finaliza Lupinho.
Vencedor de dois prêmios da 17º edição do Fest Aruanda, em João Pessoa, na Paraíba, Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor também foi destaque da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A obra, que é narrada ator Paulo César Pereio, deve circular por outros festivais nos próximos seis meses e, depois, terá a estreia comercial nos cinemas nacionais.