Mais antigo certame cinematográfico do mundo e um dos três de maior prestígio, junto com os de Cannes e Berlim, o Festival de Veneza tem entre os destaques da sua 75ª edição uma personalidade que não parece se sentir muito à vontade diante das câmeras. Presidente do Uruguai entre 2010 e 2015, José Alberto Mujica Cordano, afetivamente consagrado como Pepe Mujica, é personagem de dois filmes na programação do evento italiano, que chega ao seu final no próximo sábado.
Como homem público, Mujica, 83 anos, projetou ao mundo uma imagem de austeridade e despojamento na vida pessoal. Sob sua gestão, o "paizito" passou a ser visto, dentro da realidade da América Latina, como exemplo em qualidade de vida, educação e bem-estar social. Mujica também promoveu o avanço de pautas progressistas relacionadas à descriminalização do aborto, à aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e à legalização do consumo de maconha.
O perfil e o histórico do ex-guerrilheiro tupamaro, que semanas atrás renunciou ao cargo de senador "pelo cansaço de uma longa viagem", chamou a atenção do cineasta sérvio Emir Kusturica, um dos mais destacados autores do cinema contemporâneo (veja abaixo). O interesse do diretor por aquele que chama de "o último grande herói da política" deu origem ao documentário El Pepe, Una Vida Suprema, filme apresentado em Veneza ontem para convidados e que tem hoje e amanhã sessões abertas ao público, fora da competição.
Kusturica deu partida ao projeto em 2011. Realizou uma série de entrevistas com Mujica nos anos seguintes e acompanhou a rotina do político para desbravar o universo íntimo e palaciano do então presidente uruguaio - os encontros, em Montevidéu, e outros locais das andanças do político seguiram ao fim do mandato. Mujica fala de seu passado como militante de esquerda, da luta armada contra a ditadura militar que assumiu seu país em 1973, do longo período na prisão e do reingresso na militância à esquerda no processo de redemocratização do Uruguai.
Longa uruguaio retrata o período da prisão
Como já havia feito no documentário Maradona por Kusturica (2008), no qual radiografou o craque argentino, o cineasta encontra em Mujica uma espécie de alma-gêmea sintonizada no interesse pelo próximo, na transgressão com que cumpre seu ofício e na inquietação diante das desigualdades e injustiças do mundo. Em recentes declarações, Mujica disse não ter ideia de como será apresentado por esse diretor "meio genial" e que encarou a realização do documentário com "humildade e compromisso".
Já no longa-metragem uruguaio La Noche de 12 Años, de Álvaro Brechner, o registro é o da ficção inspirada em fatos reais. Selecionado para a competição da mostra paralela Orizzonti, o filme retrata o período em que Mujica e outros dois companheiros tupamaros ficaram presos em solitárias por ordem dos militares, entre 1973 e 1985. A narrativa destaca o processo de deterioração física e psicológica imposto com essa punição e a perseverança exigida para resistir.
Mujica é interpretado por Antonio de la Torre, ator espanhol conhecido por trabalhos com, entre outros realizadores, Pedro Almodóvar e Álex de la Iglesia.
Quem é Kusturica, que dirige o documentário sobre Mujica
Emir Kusturica despontou no cinema internacional em 1981, quando ganhou no Festival de Veneza o Prêmio da Crítica e o troféu de melhor primeiro filme com Você se Lembra de Dolly Bell?. Estabelecia ali marcas autorais como o olhar crítico e o humor ora anárquico, ora amargo sobre questões que tensionavam a antiga Iugoslávia, república comunista dos Bálcãs que se desintegraria de forma violenta nos anos 1990 - Sérvia, Croácia e Eslovênia são algumas das nações resultantes dessa fragmentação geopolítica.
Ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes com Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985) e repetiu o feito com Underground: Mentiras de Guerra (1995) - ganhou no evento francês também o prêmio de direção com Vida Cigana (1988). Filmou nos EUA o cult Arizona Dream (1993), com Johnny Depp. Gata Preta, Gato Branco (1998), A Vida é um Milagre (2004) e Zavet (2007) são outros de seus filmes conhecidos. No momento prepara If Not Now, When?, drama ambientado na II Guerra que adapta o livro homônimo de Primo Levi.
Kusturica tem ainda uma destacada faceta musical à frente da No Smoking Orchestra, grupo com o qual percorre o mundo apresentando uma animada mistura de rock com ritmos balcânicos.