Aos 34 anos, a atriz Leandra Leal estreia na direção homenageando artistas que desafiaram preconceitos e revitalizaram o teatro de variedades no Brasil na década de 1960. Melhor documentário pelo voto popular no Festival do Rio 2016, Divinas Divas (2016) apresenta a trajetória de oito representantes da primeira geração de travestis nacionais a brilhar em cena a partir do Rio de Janeiro: Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios. O tema e os personagens estão imbricados na biografia de Leandra: um dos primeiros palcos a abrigar homens vestidos de mulher foi o Teatro Rival, dirigido por Américo Leal, avô da realizadora.
Com uma carreira premiada como intérprete – que inclui os troféus de melhor atriz no Festival de Gramado, por Nome Próprio (2007) e Éden (2013), e no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, por Nome Próprio e O Lobo Atrás da Porta (2014) –, Leandra reuniu mais de 400 horas de material gravado e levou dois anos na montagem de Divinas Divas.
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O longa-metragem foi batizado com o nome do espetáculo originalmente criado em 2004 para comemorar os 70 anos do Rival. Uma década depois, Leandra resolveu remontar o show a fim de celebrar os 50 anos de carreira das artistas – e para servir de base a seu primeiro filme atrás das câmeras.
Divinas Divas evoca Dzi Croquettes (2009), documentário sobre o grupo que, na década de 1970, sacudiu a cena nacional com transgressores números de teatro e dança protagonizados por homens travestidos: nos dois filmes, as histórias individuais e coletivas dos personagens são costuradas por depoimentos pessoais de suas jovens cineastas. Ilustrando as falas das veteranas transformistas com imagens dos tempos de glória em teatros e boates do Brasil e de cidades como Paris e Nova York, Divinas Divas dá voz às alegrias, dramas e tristezas de figuras que dedicaram a vida à arte e fizeram desse amor uma maneira de se colocar com sua sexualidade diante da sociedade.
Entrevista com Leandra Legal
Para além da ligação das personagens com o teatro de sua família, o que mais lhe motivou a fazer esse documentário?
A história de vida de cada uma. A relação que elas têm com o ofício. É um documentário que fala muito também do meu amor pelo meu ofício, e eu acho que o que elas têm com o fazer artístico muito bonito. E a história da vida delas é de coragem, de pioneirismo.
Quais foram as maiores dificuldades para rodar o filme?
Principalmente a de produção do documentário. A gente teve muita dificuldade que as empresas investissem. Começamos com o investimento do Canal Brasil e depois fizemos um crowdfunding e em seguida ganhamos um edital do Ministério da Cultura. Outra dificuldade foi a de montagem do processo, porque tínhamos muitas horas de material e eram oito personagens, então foi muito difícil encontrar o equilíbrio entre as oito personagens e ao mesmo tempo montar um mosaico geracional com contexto histórico e deixar transparente a minha relação com elas.
A temática e o envolvimento pessoal das realizadoras com o tema de seus documentários, ambas colocando-se em primeira pessoa na narração do filme, aproxima Divinas Divas de Dzi Croquettes. Você concorda?
Acho que sim, porque são filmes que falam sobre um grupo de artistas, ela também é filha de artista (a codiretora e atriz Tatiana Issa, filha do cenógrafo Américo Issa), então acho que tem semelhanças. As divinas são contemporâneas às Dzi Croquettes, mas elas são anteriores. Começaram antes deles e têm o diferencial de estarem em cena até hoje com o mesmo espetáculo, nos dando a possibilidade de ter imagens desse espetáculo, do show, atuais. O filme Dzi Croquettes tem um material de arquivo incrível, mas acho que essa é uma diferença entre os dois.
O filme destaca o pioneirismo e a audácia dessas travestis, que abriram espaço para um gênero teatral singular no país, alcançando sucesso e mesmo aceitação social, em certa medida.
Elas eram fãs do teatro de revista das vedetes e, quando o teatro de revista começou a entrar em decadência, elas entraram em cena e fizeram espetáculos de muito sucesso e prestígio. Nos anos 1960 ainda a palavra travesti era algo de muita curiosidade, era algo misterioso. O público não tinha o preconceito que tem hoje, e então era até meio contraditório, por causa da ditadura. Hoje em dia, era para artistas trans terem mais espaço na mídia do que naquela época.
A Marquesa participou ou não da nova apresentação do espetáculo Divinas Divas? Ela conseguiu assistir ao filme concluído?
Infelizmente, a Marquesa não assistiu ao filme pronto, mas ela participou do espetáculo que a gente registrou no filme e também da temporada desse espetáculo.
Qual é a lição e o legado que as personagens do filme deixaram em termos artísticos e comportamentais?
O legado é aquele de ser aquilo que você é de verdade, em cena e fora de cena.
Ainda existe espaço no Brasil para a arte cultivada pelas personagens?
Sim, a geração delas é muito específica, elas são representantes de uma tradição específica. Hoje em dia você tem uma leva de artistas que estão aí fazendo sucesso e que são diferentes dela, mas são uma nova geração mesmo, por isso são diferentes.
Quais são seus próximos projetos como atriz e diretora?
Como atriz, os próximos projetos que vou lançar são os filmes Love Film Festival, em julho, e Bingo: O Rei das Manhãs, em agosto. Como diretora, não tenho nenhum projeto que possa falar agora, porque estou dedicada ao lançamento do Divinas Divas.