A Primavera Árabe aos poucos está chegando aos cinemas do Ocidente. Recentemente, o filme Assim que Abro Meus Olhos (2015), de Leyla Bouzid, mostrou a efervescência da juventude da Tunísia às vésperas da eclosão do movimento que desencadeou uma onda de protestos em países da região a partir do final de 2010. Agora é a vez do Egito: entrou em cartaz na Capital no final da semana passada Clash (2016), eletrizante thriller ambientado em 2013, dois anos depois da deposição do regime autoritário do presidente Hosni Mubarak e logo em seguida à queda de seu sucessor, o islamita Mohamed Morsi. Indicado pelo Egito a uma vaga na disputa do Oscar de filme estrangeiro deste ano, o longa é dirigido pelo jovem Mohamed Diab, realizador de Cairo 678 (2010) – elogiado drama sobre a busca por justiça de três mulheres que sofreram assédio.
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Título de abertura da mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes do ano passado, Clash se passa todo durante um dia de protestos no Cairo contra e a favor do governo militar que derrubou o presidente Morsi, representante da organização Irmandade Muçulmana. O longa começa mostrando o interior vazio de um caminhão da polícia, que vai ficando cheio de pessoas no decorrer da história: primeiramente é presa uma dupla de jornalistas, depois um grupo de manifestantes pró-governo que são confundidos com fundamentalistas, em seguida uma autêntica turma de militantes islâmicos, mais tarde até um policial cristão. São homens de todas as idades, duas mulheres e inclusive uma criança, com formações culturais e origens sociais diversas, confinados juntos contra a vontade e cercados por violentos distúrbios de manifestantes – cuja motivação nem sempre fica clara para os aprisionados e os espectadores, que se perguntam às vezes de que lado estão os que jogam pedras e bombas naquele momento. Essa confusão é reproduzida também dentro do camburão: entre os partidários da mesma ideologia há diferenças de pontos de vista e discussões internas que, se por um lado revelam a pluralidade de motivações e a precariedade das alianças, por outro evidenciam que há desejos, valores e sentimentos comuns a todos e acima de eventuais antagonismos.
Falando em entrevista por telefone a Zero Hora desde o Cairo, o diretor e roteirista Mohamed Diab contou que escreveu 11 versões do roteiro nos quatro anos que separaram a concepção original e a realização de Clash. O resultado é uma excepcional produção que joga o público dentro da trama – a câmera nunca sai do interior do caminhão, as cenas externas são mostradas pelas janelas do veículo. Clash é um "huis clos" de crescente tensão que, como o ambicioso O Edifício Yacoubian (2006), de Marwan Hamed, busca reproduzir em um microcosmo a diversidade da sociedade egípcia.
CLASH
De Mohamed Diab
Drama, Egito/ França, 2016, 97min, 14 anos.
Em cartaz no Espaço Itaú 3 (18h, 22h)
Cotação: muito bom
MOHAMED DIAB
Diretor e roteirista egípcio
As cenas de manifestações e conflitos com a polícia são extremamente realistas e violentas. Como foi filmar essas sequências?
As filmagens foram mesmo muito difíceis. Todo o filme foi rodado de dentro de um caminhão, o que dá a impressão de que os protestos são de verdade. Nós tivemos muito medo de que as pessoas confundissem a filmagem com um protesto real e nos atacassem. Foi muito assustador, mas filmávamos como se fosse um flashmob, rapidamente montávamos e desmontávamos a cena. No dia da filmagem da grande sequência do protesto no viaduto, as pessoas da vizinhança apedrejaram a equipe e nosso caminhão da polícia, um dos meus produtores foi sequestrado, foi uma loucura.
Quais foram as principais dificuldades que você enfrentou para rodar Clash?
Meu principal desafio foi transformar um roteiro como esse, ambientado em um lugar confinado, em um filme interessante e sem um personagem central. Outra questão foi a filmagem em si. Tivemos sorte porque nos preparamos durante um ano inteiro na pré-produção e depois ensaiamos também por um ano. Quando filmamos, sabíamos exatamente o que queríamos. Depois, quando o filme estreou, causou indignação de todo mundo, porque ele humaniza todos os lados de uma guerra civil em curso. E isso é muito difícil. Imagine fazer um filme durante a II Guerra Mundial humanizando alemães e britânicos. Foi exatamente o que aconteceu com Clash. O governo disse que nós apoiamos a Irmandade Islâmica, a Irmandade Islâmica disse que nós apoiamos o governo e os rebeldes nos acusaram de apoiar tanto um quanto outro.
Alguns anos se passaram entre a ideia do filme e a rodagem de Clash. Como as mudanças políticas no Egito afetaram o roteiro?
A diferença entre a ideia original e o filme é que ele devia celebrar nossa revolução, mas acabou registrando seu golpe de morte. O bom de ser diretor e roteirista é que pude reescrever e refilmar cenas já rodadas. Minha ideia não era falar de questões específicas da situação política egípcia, mas mostrar todos os lados do grande cenário, para que as pessoas no Brasil, por exemplo, e no mundo tivessem uma visão da situação no Egito.
Como foi dirigir os atores em uma situação tão claustrofóbica e tensa?
Acabamos formando uma espécie de família. Durante a filmagem, eu deparei com o dilema de filmar o dia inteiro dentro do caminhão: o quão duro isso seria? Meus atores ficaram semanas dentro desse caminhão. Alguns deles passaram mal, vomitavam, outros diziam que tinham pesadelos e não conseguiam dormir. Mas todos estavam 100% empenhados, e só assim conseguimos rodar o filme.