Com a estreia na Cinemateca Capitólio de História da Minha Morte (2013), de Albert Serra, forma-se em Porto Alegre uma interessante triangulação histórica-cinéfila. Segue em cartaz no mesmo espaço A Morte de Luis XIV (2016), o excepcional novo filme deste diretor catalão, autor de trabalhos tão instigantes quanto exigentes, e, no Guion Center, ainda pode ser visto Variações de Casanova (2014), título assinado por Michael Sturminger com o qual História da Minha Morte compartilha tema e personagem central: Giacomo Casanova (1725 – 1798), retratado na reta final de sua vida de palpitantes aventuras e conquistas amorosas. Em ambos, o libertino italiano está às voltas com a robusta autobiografia na qual imortalizou seus feitos e pensamentos, A História da Minha Vida, publicada entre 1822 e 1825.
Quem já assistiu e ficou impressionado com A Morte de Luis XIV perceberá que neste trabalho mais recente Serra conseguiu depurar uma marca autoral que em História da Minha Morte se mostra, digamos, em estado bruto. E pode lançar o espectador a percepções extremadas: uma fascinante experiência sensorial ou uma chatice exasperante. Serra é um artesão reconhecido por expandir seus filmes a outros campos da arte. O diálogo com a literatura, a música e a pintura é estrito em seus registros sobre grandes personagens históricos e literários, como em Honra de Cavalaria (2006), sua releitura de Dom Quixote, ou em El Cant Dels Ocells (2008), trama com inspiração no nascimento de Jesus Cristo.
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Em História da Minha Morte, com o qual ganhou o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, o cineasta provoca – palavra que tem aqui um apropriado duplo sentido – o encontro de Casanova (vivido por Vicenç Altaió) com o mitológico Conde Drácula (Eliseu Huertas), ambos tipos libertinos conhecidos pela voracidade de seus desejos carnais. É uma aproximação de universos mais conceitual do que física, no sentido de espelhar na decrepitude da figura real a vitalidade que segue preservada no imortal vampiro. Este cotejamento, porém, custa a entrar em cena nas duas horas e meia de duração do filme.
Em um primeiro segmento da trama, Casanova circula com seu séquito por um castelo na Suíça, onde divaga sobre temas que lhe interessam: mulheres, ciência, política, filosofia, astronomia. Seu principal interlocutor é o servo Pompeu (Lluís Serrat), que escuta do mestre considerações que vão da obra de Voltaire a análises proféticas sobre impérios europeus em crise, a França sobretudo: "A revolução virá, cabeças vão rolar".
A descrição dessa rotina palaciana é minimalista, com a câmera seguindo o vagar de gestos, e o som destacando o ruminar da mastigação dos personagens e a incomum musicalidade da prosódia catalã. A trilha sonora, como de hábito nos longas de Serra, combina obras eruditas contemporâneas e peças de compositores como Carl Philipp Emanuel Bach (filho de Bach) e Gabriel Fauré. Sob a luz pastoral ou diante das velas nos candelabros essa retilínea rotina de falar, comer e flanar é emoldurada por dentro de uma dilatação de tempo que forma pinturas vivas.
Muito mais à frente, o cenário se tornará sombrio. Durante uma viagem pelos Cárpatos, Casanova e sua trupe embrenham-se em uma floresta, na qual Drácula, também representado como um homem de idade avançada, preserva seu poder de sedução tão afiado quanto seus caninos. Com o registro proposto por Serra, Casanova e Drácula ganham em História da Minha Morte representações bem distintas das recorrentes de um e de outro no cinema. O ótimo trabalho de seus intérpretes – é o filme de estreia de Altaió, que, assim como Huertas, não é ator profissional – valoriza a arriscada ambição do diretor. A sinopse lança no público uma prolongada espera para que este improvável encontro traga algo de arrebatador. Serra frustra com gosto essa expectativa buscando estimular outras percepções em seu cinema.
HISTÓRIA DA MINHA MORTE
De Albert SerraDrama, Espanha/França, 2013, 138min, 14 anos.
Em cartaz na Cinemateca Capitólio, com sessão às 19h30min.