Uma colônia infestada por ladrões, corruptos e vadios não haveria de renegar esse DNA ao se transformar em nação independente. O diagnóstico que se faz do Brasil do século 18, em Joaquim, permite o espelhamento entre o passado e o presente que insiste em surpreender mesmo os mais calejados com a promiscuidade público-privada e a atávica desigualdade social sobre a qual se assentou um projeto de país em eterno desenvolvimento.
Essa conexão se mostra contundente no novo filme do cineasta pernambucano Marcelo Gomes. Joaquim ilumina a formação do mito Tiradentes, como ficou eternizado o mineiro Joaquim José da Silva Xavier (1746 – 1792), líder da Inconfidência Mineira, embrionário movimento que buscou romper o garrote de Portugal sobre o Brasil.
"Una": drama em cartaz nos cinemas discute abuso sexual na infância
"Gaga: O Amor Pela Dança" destaca trajetória do coreógrafo Ohad Naharin
"A Morte de Luis XIV" retrata os últimos dias de vida do mítico rei da França
Livro e série contam a história de cineastas que filmaram a II Guerra
Em cartaz a partir desta quinta-feira nos cinemas, simbolicamente véspera do feriado que homenageia seu protagonista, Joaquim teve première mundial em fevereiro passado, na disputa pelo Urso de Ouro no Festival de Berlim. O interesse de Gomes em seu roteiro original foi destacar não a ascensão e queda do mártir da independência, mas a tomada de consciência política do homem, seus dilemas existenciais e suas contradições.
Baseada parcialmente em fatos reais – a experiência de Joaquim na mineração, o ofício de dentista aprendido com um tio –, a trama do filme, com locações na região de Diamantina (MG), se passa num vilarejo do sertão de Minas Gerais, onde o alferes Joaquim (vivido por Julio Machado) integra uma unidade militar que combate contrabandistas de ouro. A ambição desse filho de portugueses é obter a promoção que lhe permita comprar a liberdade da escrava Preta (papel da atriz portuguesa Isabél Zuaa), com quem mantém um relacionamento apaixonado e instável, diante da impotência dele frente aos abusos aos quais ela é submetida.
Joaquim tem origem na proposta de produtores espanhóis a cineastas latino-americanos, para a realização de longas sobre insurreições contra as forças colonizadoras no continente. Da iniciativa surgiram filmes como o uruguaio Artigas – La Redota (2011), sobre José Artigas, e o venezuelano Libertador (2013), sobre Simon Bolivar. Joaquim seria o último da série, mas os espanhóis desistiram, e Gomes tocou a parceria com produtores portugueses.
– Gosto de trabalhar com cinema e história, como em Madame Satã, do qual fui roteirista, e Cinema, Aspirinas e Urubus, meu primeiro longa. Li muito sobre Tiradentes, mas me interessava destacar o que não encontrei nos registros oficiais e que preenchi com a ficção: como teria se dado o processo de construção da consciência política que transformou um militar a serviço da coroa portuguesa em líder revolucionário – afirma Gomes. – A representação de Tiradentes com a imagem parecida com a de Jesus Cristo reforçou a construção do mito. Não me interessava a figura recorrente do herói nato, daquele ungido para a missão, mas a conversão do homem comum por força das circunstâncias e do livre-arbítrio.
Essa virada se dá em uma missão que o alferes recebe para encontrar veios de ouro em terras ainda pouco exploradas rumo ao Norte. Joaquim lidera um grupo que representa o caldeirão que deu forma ao povo brasileiro: um português, um mestiço, um negro e um índio, todos enredados pelas relações de dominação e submissão que se perpetuariam no correr dos séculos. A proposta de sintetizar a polifonia cultural nesse microcosmo rende belas sequências, como a que o negro e o índio entoam cantos primitivos e ensaiam uma forma de entendimento e convivência possíveis.
– Era um ambiente cruel. A enorme riqueza explorada pelos portugueses contrastava com a imensa miséria da maioria da população – diz Gomes. – Havia crueldade com os escravos, massacres de índios, muita corrupção. O pensamento iluminista passa a ter influência, em especial com o movimento que levou os Estados Unidos à independência dos britânicos (em 1776). Existia ainda uma grande dificuldade de comunicação, com escravos falando diferentes dialetos, índios de variadas etnias, o português falado de diferentes formas. Pensei essa sequência do índio e no negro como uma espécie de hip hop, com a música surgindo como linguagem de compreensão universal.
Nessa jornada começa a fermentar em Joaquim sentimentos de revolta contra as injustiças impostas pelos colonizadores, encorpados com as leituras de relatos do revolucionários norte-americanos indicadas por um amigo poeta. O alferes também toma contato com acampamentos de escravos fugitivos.
– Os quilombos foram o primeiro exemplo de insurgência contra as forças opressoras, apontaram o caminho da rebelião possível – explica Gomes.
Durante a passagem de Joaquim pelo Festival de Berlim, o diretor percebeu que conseguiu refletir em um drama histórico brasileiro questões globais contemporâneas, visto que a herança colonial deixou cicatrizes também em muitos países do primeiro mundo.
– Fico feliz que as pessoas façam esse link entre passado e presente. O filme destaca temas universais, como amor, traição, paixão impossível e desejo de liberdade. E fala de fraturas ainda hoje expostas. Esse passado está no nosso presente, na forma como as relações sociais e de poder se formaram no Brasil. Vivemos agora uma crise política e existencial que começou lá atrás. A elite local se achava portuguesa e reproduzia o pensamento do colonizador, não queria saber de justiça social. Essa mesma elite que depois se viu francesa e hoje pensa ser norte-americana.
Joaquim
De Marcelo Gomes. Drama histórico, Brasil, 2017, 97min, 16 anos.
Estreia amanhã quinta-feira nos cinemas.