Cinema

Despertar libertário

Filme "Joaquim" mostra conversão de Tiradentes em revolucionário

Produção dirigida pelo pernambucano Marcelo Gomes participou da disputa do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2017

Marcelo Perrone

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Julio Machado interpreta o alferes mineiro Joaquim José da Silva Xavier

Uma colônia infestada por ladrões, corruptos e vadios não haveria de renegar esse DNA ao se transformar em nação independente. O diagnóstico que se faz do Brasil do século 18, em Joaquim, permite o espelhamento entre o passado e o presente que insiste em surpreender mesmo os mais calejados com a promiscuidade público-privada e a atávica desigualdade social sobre a qual se assentou um projeto de país em eterno desenvolvimento.

Essa conexão se mostra contundente no novo filme do cineasta pernambucano Marcelo Gomes. Joaquim ilumina a formação do mito Tiradentes, como ficou eternizado o mineiro Joaquim José da Silva Xavier (1746 – 1792), líder da Inconfidência Mineira, embrionário movimento que buscou romper o garrote de Portugal sobre o Brasil.

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Em cartaz a partir desta quinta-feira nos cinemas, simbolicamente véspera do feriado que homenageia seu protagonista, Joaquim teve première mundial em fevereiro passado, na disputa pelo Urso de Ouro no Festival de Berlim. O interesse de Gomes em seu roteiro original foi destacar não a ascensão e queda do mártir da independência, mas a tomada de consciência política do homem, seus dilemas existenciais e suas contradições.

Baseada parcialmente em fatos reais – a experiência de Joaquim na mineração, o ofício de dentista aprendido com um tio –, a trama do filme, com locações na região de Diamantina (MG), se passa num vilarejo do sertão de Minas Gerais, onde o alferes Joaquim (vivido por Julio Machado) integra uma unidade militar que combate contrabandistas de ouro. A ambição desse filho de portugueses é obter a promoção que lhe permita comprar a liberdade da escrava Preta (papel da atriz portuguesa Isabél Zuaa), com quem mantém um relacionamento apaixonado e instável, diante da impotência dele frente aos abusos aos quais ela é submetida.

Joaquim tem origem na proposta de produtores espanhóis a cineastas latino-americanos, para a realização de longas sobre insurreições contra as forças colonizadoras no continente. Da iniciativa surgiram filmes como o uruguaio Artigas – La Redota (2011), sobre José Artigas, e o venezuelano Libertador (2013), sobre Simon Bolivar. Joaquim seria o último da série, mas os espanhóis desistiram, e Gomes tocou a parceria com produtores portugueses.

– Gosto de trabalhar com cinema e história, como em Madame Satã, do qual fui roteirista, e Cinema, Aspirinas e Urubus, meu primeiro longa. Li muito sobre Tiradentes, mas me interessava destacar o que não encontrei nos registros oficiais e que preenchi com a ficção: como teria se dado o processo de construção da consciência política que transformou um militar a serviço da coroa portuguesa em líder revolucionário – afirma Gomes. – A representação de Tiradentes com a imagem parecida com a de Jesus Cristo reforçou a construção do mito. Não me interessava a figura recorrente do herói nato, daquele ungido para a missão, mas a conversão do homem comum por força das circunstâncias e do livre-arbítrio.

Essa virada se dá em uma missão que o alferes recebe para encontrar veios de ouro em terras ainda pouco exploradas rumo ao Norte. Joaquim lidera um grupo que representa o caldeirão que deu forma ao povo brasileiro: um português, um mestiço, um negro e um índio, todos enredados pelas relações de dominação e submissão que se perpetuariam no correr dos séculos. A proposta de sintetizar a polifonia cultural nesse microcosmo rende belas sequências, como a que o negro e o índio entoam cantos primitivos e ensaiam uma forma de entendimento e convivência possíveis.

– Era um ambiente cruel. A enorme riqueza explorada pelos portugueses contrastava com a imensa miséria da maioria da população – diz Gomes. – Havia crueldade com os escravos, massacres de índios, muita corrupção. O pensamento iluminista passa a ter influência, em especial com o movimento que levou os Estados Unidos à independência dos britânicos (em 1776). Existia ainda uma grande dificuldade de comunicação, com escravos falando diferentes dialetos, índios de variadas etnias, o português falado de diferentes formas. Pensei essa sequência do índio e no negro como uma espécie de hip hop, com a música surgindo como linguagem de compreensão universal.

Nessa jornada começa a fermentar em Joaquim sentimentos de revolta contra as injustiças impostas pelos colonizadores, encorpados com as leituras de relatos do revolucionários norte-americanos indicadas por um amigo poeta. O alferes também toma contato com acampamentos de escravos fugitivos.

– Os quilombos foram o primeiro exemplo de insurgência contra as forças opressoras, apontaram o caminho da rebelião possível – explica Gomes.

Durante a passagem de Joaquim pelo Festival de Berlim, o diretor percebeu que conseguiu refletir em um drama histórico brasileiro questões globais contemporâneas, visto que a herança colonial deixou cicatrizes também em muitos países do primeiro mundo.

– Fico feliz que as pessoas façam esse link entre passado e presente. O filme destaca temas universais, como amor, traição, paixão impossível e desejo de liberdade. E fala de fraturas ainda hoje expostas. Esse passado está no nosso presente, na forma como as relações sociais e de poder se formaram no Brasil. Vivemos agora uma crise política e existencial que começou lá atrás. A elite local se achava portuguesa e reproduzia o pensamento do colonizador, não queria saber de justiça social. Essa mesma elite que depois se viu francesa e hoje pensa ser norte-americana.

Joaquim
De Marcelo Gomes. Drama histórico, Brasil, 2017, 97min, 16 anos.
Estreia amanhã quinta-feira nos cinemas.

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