Dezenas de filmes franceses têm se debruçado nos últimos anos a iluminar um tema permanentemente na pauta dos países desenvolvidos e que na França é particularmente complexo: a inserção social dos imigrantes e seus descendentes, em especial os que trazem em seu DNA a herança colonialista rompida com mais sangue do que diplomacia. Em cartaz no Guion Center, Fatima coloca essa questão sob a perspectiva familiar e feminina. Adiciona a pontos recorrentes no debate geral o choque geracional amplificado por expectativas e conquistas que são ilustrativas de como países civilizados, mesmo aos trancos, buscam dar às gerações futuras a esperança de convivência em um ambiente com menos desigualdade, intolerância e preconceito.
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A personagem que dá título ao filme (vivida por Soria Zeroual) é uma faxineira de 44 anos que deixou seu vilarejo na Argélia há duas décadas para iniciar a vida com o marido em uma metrópole da França. Está agora divorciada e trabalha pesado para criar as duas filhas nascidas no país, Souad (Kenza Noah Aïche), de 15 anos, e Nesrine (Zita Hanrot, premiada com o César de atriz promissora), de 18. O pai das garotas não é de todo ausente, mas tem outra família e ajuda com o pouco que pode.
Fatima encara uma fase de turbulência. Transborda de orgulho com Nesrine iniciando a faculdade de medicina, conquista que lhe exige uma jornada de trabalho ainda mais hercúlea para arcar com os custos, e está também apreensiva com os passos da espevitada Souad, que anda dispersiva na escola em razão de outros interesses surgidos em seu radar nessa fase de ebulição hormonal.
O natural fosso geracional entre pais e filhos que começam a ganhar asas é aprofundado, nessa família, pelo choque cultural. A falta de diálogo é literal. Fatima é praticamente analfabeta em francês, idioma nato das garotas, que, por sua vez, pouco interesse têm por suas raízes árabes. A mãe preserva costumes como o véu, reclama que as filhas mostram demais seus corpos com decotes e roupas justas, vê com maior naturalidade o papel submisso das mulheres e preocupa-se demasiado com a opinião das vizinhas – em razão da incomum, naquela comunidade, façanha de Nesrine, mãe a filha passaram a ser vistas como arrogantes.
Em sua radiografia doméstica de um tema com amplo escopo social, Fatima, com direção do marroquino Philippe Faucon, tem pontos de conexão com o filme brasileiro Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, que também mostra conflitos decorrentes do rompimento de uma filha com o ciclo atávico de servidão e ignorância cumprido por sua mãe e gerações de mulheres da família antes dela. Nesse espelhamento entre passado, presente e futuro, a carta-desabafo em que Fatima resume sua vida é um ponto de grande potência dramática no filme.
A diferença entre essas duas realidades parece ser que, na França, o combate à desigualdade está integrado ao processo civilizatório como demanda de toda a sociedade, enquanto no Brasil segue sujeito a chuvas, trovoadas, avanços e retrocessos, em meio à indiferença de quem enxerga o drama de cima e ao humor do governante da vez.
Fatima
De Philippe Faucon
Drama, França, 2015, 79min.
Em cartaz no Guion Center 3. Horários até o dia 22 de março: 14h15min (menos sábado), 17h50min e 19h15min.