O anúncio do inédito casamento artístico de um cineasta célebre pela verve melodramática com uma autora contida, reflexiva – e, acima de tudo, antimelodramática – surpreendeu os fãs de ambos. O universo passional e exagerado do diretor espanhol Pedro Almodóvar parecia imiscível com as tramas sofisticadas, lentas e por vezes sombrias da escritora canadense Alice Munro, ganhadora do Nobel de Literatura em 2013. O ponto de contato das duas obras, no entanto, era evidente: tanto Almodóvar quanto Munro exibem o raro talento de investigar a psicologia feminina sem cair no estereótipo ou no lugar-comum. O filme Julieta, fruto dessa união improvável, chega aos cinemas na quinta-feira.
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Almodóvar escolheu três contos do livro Fugitiva, publicado em 2004 e lançado no Brasil em 2006, para construir a trama de Julieta. Acaso, Logo e Destino apresentam três momentos distintos na vida de uma única personagem, Juliet, que no filme o diretor rebatiza com a versão latina do nome, trocando também o cenário gélido dos contos pela ensolarada paisagem mediterrânea. Almodóvar aproveita a juventude de Julieta para revisitar a estética dos anos 1980 de longas como O matador e Mulheres à beira de um ataque de nervos, investindo em uma paleta de cores primárias contrastantes. Outra piscadela para o próprio passado é a presença no elenco da atriz-fetiche Rossy de Palma – a quem cabe um papel pequeno, mas decisivo na trama.
Julieta (vivida pelas belas Adriana Ugarte, na juventude, e Emma Suárez, na maturidade) é uma jovem professora quando encontra seu destino em uma viagem de trem. Uma troca de lugares faz com que ela conheça Xoan (Daniel Grao), homem casado com uma mulher que está em coma. Os dois se apaixonam e dessa paixão, a princípio proibida, nascerá Antía, a filha com a qual Julieta terá perdido contato quando o filme começa – somos apresentados ao seu passado por meios de flashbacks. A relação de Julieta com a filha, interrompida abruptamente, e com a própria mãe, que sofre de uma doença degenerativa, forma o eixo central dessa trama que investiga o lado sombrio da maternidade.
Coma, culpa, maternidade e ajuste de contas com o passado, temas recorrentes na obra de Almodóvar, ganham aqui pinceladas de tragédia grega. Com nome de heroína shakespeariana, Julieta, que leciona mitologia clássica, parece sofrer as consequências da mesma hybris (desmedida) que sela o destino dos personagens trágicos. A maldição que cai sobre sua personagem, a princípio, parece não ter uma causa evidente. Mas assim como na tragédia grega nada acontece por acaso também, na vida das pessoas comuns a chave que abre a porta de um infortúnio às vezes pode estar guardada em uma velha gaveta esquecida do passado.
Julieta e Juliet
Julieta, o filme, está para Juliet, a personagem de Alice Munro, como as sombras na caverna de Platão estão para as figuras de carne e osso do mundo real. Não chega a ser uma falha da obra de Almodóvar o fato de que boa parte dos detalhes que dão profundidade aos personagens de Munro tenham sido deixados de fora do roteiro do filme. Uma boa adaptação literária é o resultado de uma boa leitura, ou seja, de uma interpretação capaz de se aproximar da essência do texto sem necessariamente esgotar todas as sutilezas do original. A leitura de Almodóvar é inteligente, mas quem se interessar em ler os três contos do livro Fugitiva (Biblioteca Azul, 352 páginas, R$ 45) que deram origem ao filme vai penetrar em um universo ficcional muito mais rico e complexo.
Chamam atenção, porém, os momentos em que Almodóvar desafia o original. No texto de Alice Munro, por exemplo, a filha de Juliet se chama Penélope, nome da mulher que espera 20 anos pela volta de Ulisses da Guerra de Troia – espelho da espera de Juliet pela volta da filha. (No filme, a filha de Julieta se chama Antía – uma divindade de segundo time da mitologia grega.) Mais grave é a diferença no desfecho da personagem principal: enquanto o final do filme oferece uma espécie de apaziguamento para Julieta, o único conforto que Munro dá a sua Juliet é o de aprender a conviver com a própria dor.
Julieta
De Pedro Almodóvar
Drama, Espanha, 2016, 99min. Estreia quinta-feira nos cinemas.