Ainda me lembro, em 2014, do dia em que soube que o prédio da Escola de Artes em Glasgow, do arquiteto Charles Rennie Mackintosh – um monumento espetacular, considerado sua obra-prima – tinha pegado fogo, um acidente bobo que começou quando um projetor aquecido se incendiou com os gases emitidos pela lata de spray de um estudante.
Nunca tinha estado lá, mas como fã apaixonado do trabalho do escocês desde que o descobri na faculdade (foi uma das razões, aliás, por que optei por História da Arquitetura e acabei fazendo minha carreira no jornalismo especializado desse setor), senti um peso no estômago e uma sensação de perda irreparável, como se tivesse perdido um parente.
Em meados de junho, levei outro susto, com requintes de um déjà vu pavoroso, quando li que o prédio tinha se incendiado de novo. Não tinham instalado sprinklers ainda, deixando a estrutura – que o jornal The Guardian comparou a uma "carcaça escurecida" – totalmente vulnerável durante a reconstrução. Anos de restauração se perderam, e agora o debate é para saber se vale a pena reconstruir o edifício, que estava programado para reabrir em 2019.
Não dá nem para explicar o que essa tragédia representa para o mundo da arquitetura. O edifício de três andares revestido de pedra que Mackintosh começou quando tinha vinte e tantos anos, erguia-se orgulhoso como prova de sua originalidade e coragem. Contrastando exteriores pesados (ainda que suavizado pelos janelões) com interiores intrincados e etéreos, é uma fusão radical de elementos dos castelos escoceses, das casas em estilo Arts & Crafts, dojôs japoneses e salões em art nouveau. E a biblioteca elevada, cercada em um mezanino, é seu espaço mais famoso, alta como uma floresta imponente, com painéis de madeira complexos, ainda que leves, luminárias de aço ornamental, coloridas e frágeis, criando um ambiente mágico e elegante, perfeito para uma escapada do movimento da cidade.
Agora virou um monte de escombros e, mesmo que seja reconstruído, o resultado será apenas um simulacro do original. Porém, nem tudo está perdido, por mais terrível que sejam as implicações dessa tragédia, já que Glasgow tem muito mais do que esse Mackintosh a oferecer.
Em uma visita à cidade, no ano passado, tive a sorte de poder explorar várias obras do mestre além da Escola de Arte, e me vi empolgado ao perceber como foi gratificante me manter afastado de seu ícone. A rota me deu a chance de explorar não só novas estruturas, mas aprender mais coisas a respeito da vida do arquiteto e descobrir alguns segredos de sua cidade natal, quase sempre ignorada, e que me revelou uma criatividade ousada, irreverente até, que reflete, como descobri, o espírito dele.
Mas, primeiro, um pouco de história: Mackintosh (nascido em 1868, morreu em 1928; este ano, a cidade comemora o que seria seu 150º aniversário com passeios e eventos ao longo dos doze meses) era um rebelde criativo, a antítese do arquiteto padrão. Estava anos, talvez décadas, além do seu tempo, dono de uma habilidade confiante para mesclar a arquitetura com o trabalho artesanal, incorporando formas naturais, geometrias abstratas, texturas rústicas, cores fortes e diversos estilos históricos às estruturas que tinham um visual diferente de tudo o que já se vira até então.
A Escola de Artes, por exemplo, virou os estilos baronial, neoclássico e vitoriano de cabeça para baixo. Embora parecesse familiar e contido a princípio, sua distribuição de espaços pouco comum e a intrincada combinação de detalhes pitorescos se transformaram em algo infinitamente mais mágico.
Cheguei para o tour pelas outras obras de Mackintosh em cima da hora. A visita fora uma decisão tomada de impulso, um dia reservado só para mim acrescentado a uma viagem planejada anteriormente pela minha namorada e seus amigos. Depois de aterrissar em Glasgow bem cedinho, escovei os dentes e deixei de lado aquela soneca, empolgado com a oportunidade de conferir de perto os lugares que há muito imaginara só em pensamento.
Ocupado com a complicada tarefa de dirigir na mão esquerda (com transmissão manual, ainda por cima), passei por ruas cinzentas e indistintas sob a chuva, absorvendo a combinação local da arquitetura histórica sóbria e detalhada com as estruturas escancaradamente modernas. Aquilo ali na frente é uma ponte estaiada de aço branco? Será que eu vi mesmo um prédio em art déco escondido ao lado daquele shopping center? E o que é aquele exagero vitoriano de aço e vidro ali na esquina?
Seguindo as instruções do meu GPS – pronunciadas, aliás, em um forte sotaque local –, consegui encontrar o estacionamento minúsculo da minha primeira parada. A House for an Art Lover (Casa para um Amante da Arte) fica na porção sul da cidade, no impecável Bellahouston Park, que mais tarde soube ter recebido a Exposição do Império, em 1938, uma das maiores coleções de arquitetura moderna já reunida.
A casa não é a original; foi construída em 1996 (a partir da planta criada por Mackintosh, em 1901, para uma competição organizada pela revista alemã Zeitschrift Fur Innendekoration) pelo engenheiro Graham Roxburgh. Entretanto, é excepcional, e consiste em uma introdução fantástica aos ingredientes essenciais do mestre escocês.
Como aconteceu com a Escola de Artes, o arquiteto alterou completamente as expectativas: a fachada texturizada de estuque branco me pareceu, a princípio, a de uma estrutura baronial típica, mas as frontarias são sutilmente descombinadas, as paredes decoradas com frisos dourados tridimensionais com motivos naturais como flores, sementes, raízes e caules.
Do lado de dentro, inicialmente a paleta também parecia contida, com a madeira escura forrando as paredes brancas do que parecia uma casa britânica da virada do século – mas os detalhes, e a combinação de espaços amplos e comprimidos contavam uma história bem diferente. Meus sentidos foram bombardeados por um caleidoscópio de formas coloridas, curvilíneas, sofisticadas, evidência do fascínio de Mackintosh pela natureza, o simbolismo e o misticismo.
Algumas evocam claramente a flora e a fauna da art nouveau; outras lembravam os contornos geométricos e mais arrojados da art déco. Cada faceta das luminárias quadradas, em tom dourado, ganhou um coração de vidro vermelho. Os candelabros, em forma de cilindro, são formados por padrões contínuos de rosas e violetas altas, lembrando a coroa de uma fada. As cadeiras de madeira branca, de pernas e detalhes finíssimos, ganharam motivos circulares que lembram ovos – por tabela, associados à fertilidade.
As plantas exóticas parecem emergir dos tapetes, das pinturas, das prateleiras embutidas, murais de parede e vitrais. Um piano branco se estica rumo ao teto, feito uma árvore em crescimento, culminando em um tipo de dossel entalhado magnífico, com direito a rosas, pombas e brotos verdes –, detalhe arquitetônico cuidadoso que toma a forma de arte sofisticada e contação de história sutil.
Há um sem-fim de opções a serem exploradas do lado de fora da casa, incluindo esculturas contemporâneas, um labirinto, um playground extravagante e um Centro de Memória com artefatos da Exposição do Império.
Infelizmente, porém, eu não podia me demorar; tinha mais Mackintosh para ver. Assim, saí a toda, rumo a Queen's Cross Church, conhecida localmente como a Igreja de Mackintosh, na região norte de Glasgow, em um bairro operário simples, mas charmoso, cheio de casinhas de tijolo vermelho e ruas sinuosas.
Meu guia, Sven Burghardt, que tinha um sotaque alemão forte e animado, parecia orgulhoso de poder compartilhar a maravilha em arenito vermelho, relativamente escondida. Há muitos anos trocara Stuttgart por Glasgow e parecia perfeitamente à vontade nesse ambiente tranquilo e ventoso. Logo de cara, notei o telhado de madeira imenso, com uma torre em forma de barrica e que, segundo Burghardt, foi projetado para lembrar a quilha de um barco, referência à indústria da navegação que dominava a cidade na sua época de Mackintosh, perdendo apenas para Londres como grande centro industrial britânico.
Inaugurada em 1899, foi a única igreja projetada pelo arquiteto, e mais um ótimo exemplo de sua obsessão com os símbolos da natureza, encontrados em todo lugar, como se estimulasse uma caça ao tesouro arquitetônica. Paredes de madeira sombria, púlpitos, portas, bancos e balcões são entalhados com maçãs, flores de cabo longo, sementes e pássaros de bico longo, se cruzando, ziguezagueando e girando uns sobre os outros, a cor escura contrastando drasticamente com os vitrais gigantescos – um deles dominado por um coração azul-cobalto, o outro por uma árvore da vida verde-esmeralda.
Ao subir para o segundo andar, pude ver, de relance pelas janelas dos corredores, as ruas tortuosas que cercam o templo e, a partir do espaço aconchegante do coro, admirar a visão panorâmica do espaço como um todo.
Mackintosh, como era seu padrão, projetou cada palmo da estrutura, das maçanetas às aberturas da calefação. Esse papel abrangente e dominador, comum no movimento Arts & Crafts da virada do século, é conhecido em alemão, segundo Burghardt, como "Gesamtkunstwerk", ou "obra de arte total".
Quando saí do prédio, de volta ao mundo real e chuvoso, comecei a notar coisas que me tinham passado despercebidas quando ali entrei: a fachada incongruente, por exemplo, mistura o traçado ornamental das catedrais góticas com as janelas de fenda e torreões bojudos dos castelos escoceses e as aberturas em formato de coração e plantas que são a cara de Mackintosh.
Outro detalhe que Burghardt dividiu comigo foi um retrato em preto e branco do arquiteto, tirado quando ainda era jovem, de bigodão, blazer esportivo e uma echarpe amarrada em um laço no pescoço, mais parecendo um astro do cinema de sua época, e alguém que poderia também se sentir à vontade na nossa.
A expressão levemente arrogante e maliciosa escondia sua falta de interesse nas convenções, mostrando por que era mais apreciado pelos radicais da Secessão de Viena – movimento de arte da virada do século que confrontava a tradição acadêmica – do que pelos escoceses mais tradicionais.
O status de "peixe fora d'água" de Mackintosh (que passou a incomodá-lo mais e mais, conforme a carreira foi progredindo, até fazê-lo deixar o país) foi reforçado para próxima parada: o Clube de Arte de Glasgow, no centro da cidade e que, na época do arquiteto, representava o QG do estado vigente.
Estabelecido em 1867 e embelezado por Mackintosh em 1897, quando ele trabalhava para a firma Honeyman & Keppie (do qual logo foi despedido por não conseguir um grande volume de trabalho), o ambiente antiquado e revestido em mogno era (e continua sendo) basicamente um clube privado, do qual ele nunca foi convidado a fazer parte.
Mas, ainda assim, ajudou a criar a Galeria de pé-direito alto, mistura entre uma sala de jantar medieval grandiosa e um museu de curiosidades vitoriano, com claraboias de vidro e ferro, cor-de-rosa e verde nas paredes, sofás de couro escuro e vigas pesadas.
Minha guia, Efric McNeil, primeira mulher a se tornar presidente do clube, orgulhosa, fez questão de mostrar os detalhes pitorescos de Mackintosh, que se destacam ainda mais em um ambiente tão tradicional: frisos coloridos evocando vinhas espinhosas, frutas maduras e até a genitália feminina; coberturas das aberturas de ventilação curvadas, em madeira e ferro batido; almofadas de portas metálicas e brilhantes nas quais aparecem sementes curvas e mulheres de pernas longas.
Eu teria ficado mais, mas a luz do dia estava se esvaindo e precisava correr para Helensburgh, cidadezinha de cartão portal aninhada às margens do Firth of Clyde, a cerca de uma hora a oeste de Glasgow, para ver aquela que é considerada a obra-prima de Mackintosh em termos residenciais, Hill House (1904), seu primeiro projeto particular, para o famoso editor Walter Blackie. Está situada, como o nome diz, no topo de uma colina, em um bairro exclusivo um pouco ao norte do centro, com paredes de pedra, uma propriedade envelhecida e pitoresca, com vista para a água.
Talvez tenha sido a luz suave, já escassa, ou quem sabe o fato de eu ter a casa toda para mim em uma visita fora da alta temporada – pode ser também que tenha sido porque Mackintosh a projetou quando sua visão única estava, como seu trabalho, no auge, mas a verdade é que em nenhum outro lugar que visitei durante a viagem seu espírito visionário e sua mágica se mostraram tão explicitamente. Em todos os cantos, todos os espaços, meu coração disparava. Parecia uma criança deslumbrada, vivendo uma das maravilhas de seu mundinho pela primeira vez.
Das inúmeras fantasias, o cômodo de que mais gostei foi a sala de visitas – o salão de convivência aberto para os jardins rústicos da propriedade – que minha guia, Lorna Hepburn, uma senhora de meia-idade reservada, mas muito gentil que trabalha no circuito do patrimônio cultural local há décadas, chama de salão "de cair o queixo".
Mackintosh criou um tipo de jardim de inverno, com estêncil cor-de-rosa nas paredes; móveis altos e esguios com padrões inspirados em plantas; uma lareira em mosaico decorada com formas lembrando lágrimas coloridas e decorada com utensílios que remetem a pés de milho, vagens e outras plantas. Foi ele também que criou as cortinas, a escrivaninha, as luminárias e o tapete.
Conforme fomos explorando a casa, Hepburn me contou que Mackintosh, como em muitos de seus projetos, havia trabalhado com a mulher, a talentosa arquiteta Margaret Macdonald. É difícil saber quem fez o quê, mas de acordo com a guia, a mão dela é evidente na figura feminina sobre a lareira, que se funde com os padrões florais à sua volta, e que pode ser vista nas tapeçarias, nos vitrais e nos tecidos bordados espalhados pela mansão.
A paixão de Margaret pelas formas naturais e femininas teve um forte impacto nas parcerias do casal, muito mais do que se sabe publicamente. Depois de saber do fato, sua presença – e a combinação de motivos geométricos e orgânicos – se fez claramente presente em toda a casa e nos outros projetos de Mackintosh que visitei depois.
"Margaret é um gênio, eu só tenho talento", foi a frase que ele teria dito a respeito da parceria.
Explorando o resto da Hill House, fiquei maravilhado com a capacidade quase obsessiva da dupla de controlar cada centímetro quadrado do espaço e da experiência, meus olhos pulando dos candelabros roxos de vidro e esmalte para as poltronas de janela coloridos, passando pela "escrivaninha quimono", os compartimentos estendidos como a roupa típica japonesa, revestida de madrepérola.
Na biblioteca, fiquei maravilhado com os livros, todos publicados pelo dono da casa, seguindo o mesmo padrão brincalhão incipiente que Mackintosh usou nas capas e espinhas. E ficaram gravados na minha mente depois que voltei para Glasgow, enquanto rabiscava observações no meu caderno em um pub, caminhando pelas ruas cheias de gente e riso, notando influências do arquiteto por toda parte, desde o ferro batido curvado do nosso apartamento alugado até as pedras entalhadas espalhadas pelo centro.
Os dias que se seguiram foram muito mais variados, mas, ainda assim, incluíram outras de suas obras: uma recriação sensacional do sobrado de três andares de Mackintosh e Macdonald na galeria Hunterian; peças do famoso Salão de Chá Willow (temporariamente fechado para reformas quando visitei, mas reaberto agora em julho) no Museu & Galeria de Arte Kelvingrove; os corredores fantasmagóricos da Scotland Street School; as abstrações coloridas em pedra na fachada do Daily Record Building.
Cheguei até a visitar o que restou da Escola de Arte, com seus detalhes excêntricos em ferro – muitos dos quais destruídos –, arriscando inclusive uma espiada em meio aos tapumes.
Ainda assim, nada se compara àquela visita do meu primeiro dia, cego de sono: o primeiro contato com as criações de Mackintosh, quando absorvi o que, para mim, era uma visão revolucionária e independente da arquitetura, e que continua vanguardista mais de um século depois.
Quando penso nessa excursão corrida que fiz, me vem à mente a genialidade de Mackintosh e sua mágica elegante e ousada, que não morreram com os dois incêndios que atingiram uma de suas principais obras em apenas cinco anos. Pode até parecer heresia, mas talvez tivesse mesmo que ser assim. Quem sabe, no seu 150º aniversário, o rebelde antiestablishment, com aquele sorriso torto, teria aceitado sem nem se importar.
Por Sam Lubell