A artista visual Charlene Bicalho, 39 anos, tem acordado todos os dias com o som dos pássaros e das folhas de eucaliptos balançando. Isso quando não escuta o galo cantando, no galinheiro que fica do lado da casa de madeira com a pintura verde descascada, sua residência desde o dia 6 deste mês no interior de Maquiné. A mineira é uma dos 12 artistas de sete Estados brasileiros que vieram ao Litoral Norte para mergulhar na cultura local e criar.
Viabilizado com recursos da Lei Aldir Blanc, o Casco — Programa de Integração Arte e Comunidade pretende aproximar arte de moradores de distritos onde não há galerias nem museus. Cada artista foi alocado em uma localidade diferente dos municípios de Itati, Maquiné, Osório, Terra de Areia e Três Forquilhas.
Durante três semanas, eles terão a missão de produzir uma obra de arte que converse com as particularidades de cada território, envolvendo as narrativas dos habitantes ou a paisagem do entorno.
Os artistas têm liberdade para optar por qualquer linguagem da arte contemporânea — vídeo, ação performática, produção literária, objetual, processual, instalação, entre outras.
— A gente tem aqui artistas mais acostumados com foto, outros mais escultóricos, tem gente em que seu corpo entra em cena, tem artista que trabalha jardinagem, o universo natural. Mas pode ser que todos surpreendam — diz Paola Mayer Fabres, que divide a curadoria do projeto com Luciano Nascimento Figueiredo e Maria Helena Bernardes.
O Litoral Norte foi escolhido por ter, em uma escala geográfica relativamente pequena, uma rica diversidade histórica, natural e social.
— Aqui tem aldeias indígenas, povoados de ocupação açoriana, colônia alemã, quilombos — exemplifica o responsável pelo levantamento social e histórico do projeto, Maurício Manjabosco.
Charlene se instalou no Quilombo Morro Alto, entre Osório e Maquiné. É um quilombo autorreconhecido junto à Fundação Palmares, que luta há mais de 15 anos pela regularização do território por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Os moradores descendem de escravos que trabalhavam em uma grande fazenda que existia ali no século 19. Mas muita gente acabou indo embora para buscar trabalho. Muitos também venderam lotes da terra para não-quilombolas. A centímetros da entrada da porta de casa, passam uns cabos delimitando um lote comercializado. Esse êxodo por parte de alguns e a vontade de retornar de outros estão entre as coisas que mais despertaram interesse da artista até agora.
Charlene tem, sobre a escrivaninha da sala, um livro sobre hidrografia do Rio Tramandaí, o Atlas Ambiental e até uma cartilha do pescador artesanal. Tenta saber tudo sobre a região, e, especialmente, sobre o povo que mora ali.
— Quero entender quem é esse quilombo, o que o movimenta, quais as relações e os conflitos internos e externos — diz.
Quem a recebeu ali foi a família Silva Forte. Ela está hospedada na casa de Marciel — na parede do quarto onde dorme, tem um grande quadro do proprietário e de sua esposa brindando com espumante.
Na manhã deste sábado (13), durante a visita da reportagem, o serviços gerais Mauricio, irmão de Marciel, cozinhava feijoada no fogão a lenha da casa onde está Charlene. Alguns dias antes, a artista foi com a esposa de Mauricio, Ieda, tomar banho na Lagoa do Ramalhete, a poucos metros da casa.
Charlene ainda não sabe qual será sua criação. Neste momento, o que está fazendo é escutar.
— É uma escuta atenta, não só com o ouvido, mas da sensação que o lugar traz, dos sabores diferentes desse lugar. O meu trabalho vai ser pensando nas afetações sobre esse corpo, a partir deste território, com os elementos que vou encontrando — relata.
O objetivo do Casco é apresentar os trabalhos dos 12 artistas em live pela internet no dia 27, com plataformas de transmissão ainda definir. O material também deve ser publicado em um site, gerar um livro e um minidocumentário.
Os artistas
Os artistas do Casco são nomes de destaque no circuito da arte contemporânea e trabalham com diferentes linguagens artísticas. Em comum, possuem carreiras marcadas por trabalhos que envolvem relações comunitárias e territoriais. São eles:
- Arthur L. do Carmo (Curitiba, PR)
- Carolina Cordeiro (Belo Horizonte, MG)
- Charlene Bicalho (João Monlevade, MG)
- Daniel Escobar (Santo Ângelo, RS)
- Daniel Caballero (São Paulo, SP)
- Dirnei Prates (Porto Alegre, RS)
- Fabiana Faleiros (Pelotas, RS)
- Lilian Maus (Salvador, BA)
- Pablo Paniagua (Giruá, RS)
- Tereza Siewerdt (Rio do Sul, SC)
- Thiago Guedes (Recife, PE)
- Tomaz Klotzel (Pelotas, RS)