Por Carlos Nejar, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras
Foi em meio às descobertas com a leitura de "Cem Anos de Solidão" que o escritor Carlos Nejar quase encontrou a morte, traiçoeira, carregada por uma onda em Tramandaí.
Nenhum leitor acertou que a criança da página 25 da Zero Hora de sábado era Carlos Nejar.
De menino a adolescente, todos os anos íamos a Tramandaí. Meu pai possuía uma casa com certo conforto naquele balneário gaúcho. Casa que resistia aos paternos negócios e resistiu à infância. E foi ali que, de maneira mágica e imperiosa, li Cem Anos de Solidão, o que me tomou, aos poucos, o verão, com Macondo e a escrita deste alfabetizador de alma, que é García Márquez. Ficava na grande sombra da árvore daquela prodigiosa imaginação. E Tramandaí era um lugar-refúgio, até quando uma mordida feroz da matemática me atitou, a única vez, no colégio do Rosário, que eu cursava, numa segunda época. E foi assim que os números me entenderam e eu entendi os números. Talvez os tenha entendido para sempre, até a constelação da Ursa-Maior, ou Andrômeda. Porque descobri que os números só são felizes conosco. Enferrujam-se na solidão.
Mas o acontecimento se deu na praia, durante o verão, com banhistas que se multiplicavam pela areia. E as coisas simples são as mais dramáticas e muitas vezes invencíveis. Explico. Entrei no oceano, que não estava manso e uma onda me cobriu e eu caí num buraco que parecia emendar-se noutro como um túnel. Os pés já não atingiam o fundo e tive vontade de gritar, mas nem o grito tinha força na garganta. E pensei: o mar vai me engolir e tentei dar braçadas cegas, porque nadar mal sabia. E vi aquilo bem perto a cara da minha morte, tão nítida que me assustou. O mar se tornou para mim enorme, tortuosa vaga, impetuosa, feroz. Não havia tempo para humor, salvo o mais áspero e negro, embora resvalasse na espuma como numa casca, igual a um bêbado, no vento. E não conseguisse dominar meu corpo.
Mas era como se uma mão mais forte me erguesse, fazendo-me flutuar, saindo para fora do abismo.
Não era ali o momento definitivo e sem retorno. Não saí por mim e foi como engoli o mar. E acho que engoli então o mar para sempre. Porque precisava viver para continuar respirando, escrevendo, amando ou sonhando. Nunca esqueci aquele verão. Depois meu pai vendeu a casa, mas não vendeu o que ficou comigo, desde Macondo até o quase afogamento. Nem quis voltar mais àquela casa de pedra, madeira e soluço. E a morte quer nos dar a impressão de que não tem rosto. Mas vi, sim, a sua cara metida e desaprumada. Talvez o único senso de humor fosse dela, ao assustar-me, na aparente leveza. Ou talvez tenha ocorrido apenas que, com o levantar das vagas, não tenha me percebido, ou me esqueceu por um dos seus achaques de grande acomodada. Ou adiou seu avanço para que eu pudesse escrever esta crônica. Ou nada me restou, senão rir do meu ridículo, da minha pequenez diante do absurdo e branco oceano.
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