Nada preocupa tanto as autoridades eleitorais brasileiras quanto o surto de fake news e de ataques virtuais que estão sendo preparados para inundar as redes sociais nas eleições de 2018. Neste campo pantanoso, o advogado Fabiano Machado da Rosa, gaúcho radicado no Rio, tornou-se um dos principais especialistas. Nos últimos anos, ganhou notoriedade defendendo nomes como a nadadora Joanna Maranhão, a deputada Maria do Rosário e os artistas Wagner Moura e Tico Santa Cruz de ataques difamatórios nas redes.
Para ele, as notícias falsas são uma ameaça à democracia e devem ser analisadas também sob o viés do dano psicológico causado aos alvos.
As fake news têm origem espontânea ou são ações pensadas para atender interesses particulares?
As fake news não são um movimento ingênuo e espontâneo. Ao contrário. É algo coordenado e tem capacidade destrutiva. Isso precisa ficar muito claro. As fake news têm capacidade destrutiva da democracia, da sociedade, de empresas, de projetos, e, por que não dizer, de pessoas. Em última análise, quando você fala de fake news, que é um nome pomposo para mentira espalhada indiscriminadamente, trata-se de uma mentira construída com ares de verdade. Mais do que nunca, o risco das fake news está na verossimilhança. Não é simplesmente um boato. Há uma dimensão de pessoas que se acham protegidas por um manto de anonimato que não existe mais na rede. Hoje, já existem ferramentas sofisticadas de buscar autorias e as medidas de reparações judiciais cabíveis. Existem, então, pessoas que estão ali na espontaneidade. Mas o grande perigo é a fake news derivada de um movimento planejado, estruturado e com potencial destrutivo. E o potencial destrutivo se dá porque a fake news não chega para nós como mentira. Ela chega como verdade, e influencia opiniões, paixões e condutas de convívio e de consumo. E aí temos o ovo da serpente. Quem é responsável hoje por impedir que essa serpente nasça são a imprensa séria e o Poder Judicário, que precisa determinar cada dia mais limites e fronteiras para que isso seja coibido. A fake news, com ares de verdade, é tomada como verdade. Ela tem linguagem jornalística, fontes, dados, aparência de site crível. As pessoas vão dizer que leram num veículo confiável. Até que alguém tenha a capacidade de desmenti-la.
O WhatsApp, por ser privado e fechado, é o ambiente mais propício para a disseminação de boatos?
O WhatsApp é a vida real. É um fenômeno extremamente novo. Toda tecnologia mobile surgiu há 10 anos. No início do movimento das redes, se fazia uma dicotomia, uma separação, entre o mundo virtual e o mundo real. O paradigma novo não é mais esse. Tudo é uma coisa só. Boa parte da minha vida está no virtual. As calúnias, injúrias e difamações já circulavam antes. Mas agora circulam com uma força, um alcance, uma rapidez. A questão do WhatsApp, e sobre qual plataforma de maior propagação de fake news, creio que não posso responder. Na verdade, é cross. Chega no WhatsApp, passa ao Facebook, que depois remete a um site fake ou a um vídeo no YouTube fake. O problema do WhatsApp é a dificuldade de quebrar. Mas o Facebook tem o mesmo problema, a mesma dificuldade de você ter acesso a dados.
No momento em que essas plataformas perdem a prerrogativa da privacidade, que tem o seu lado positivo, elas vão ter uma perda em massa de pessoas que querem se proteger. Ou querem se proteger porque não vão fazer nada de errado, mas, daqui a pouco, querem ter liberdade para viver suas fantasias, ter uma vida paralela. E há estudos psiquiátricos que falam muito bem disso. Existe uma epidemia de esquizofrenia virtual. Você consegue ser o que quiser no pseudomundo virtual. E as pessoas, grupos, empresas, partidos que estão usando as redes com interesses outros, como foco, método, objetivo, estratégia, tática... Não estamos falando de movimento espontâneo. Não estou falando de bobagem. Isso é meme, feito para ser cômico e do qual damos risada. Estou falando daquilo que, quando chega na mão da pessoa, ela para e diz: "Opa, recebi aqui que vão acabar com o 13º salário" ou que "a empresa tal cometeu um crime ambiental". E isso reverbera muito rápido.
As fake news não são um movimento ingênuo e espontâneo. Ao contrário. É algo coordenado e tem capacidade destrutiva. Isso precisa ficar muito claro.
O fato de as fake news terem a verossimilhança, buscarem se parecer com conteúdo jornalístico, com citação de fontes e dados, tarefas que demandam tempo e dinheiro, são alguns dos elementos centrais para indicar que a fabricação de notícias falsas é algo profissional?
Eu apontaria dois fronts. A imprensa séria que informa e um sistema judiciário que coíbe e pune. As pessoas precisam entender que devem se alimentar bem. Precisam buscar formação de qualidade. Quando você pega um texto estruturado de fake news, ele não é inteiro fake. Ele é fake só naquilo que interessa para quem está por trás da operação. Ele vai dar um conjunto de informações verdadeiras, sérias e checáveis. Com links e fontes. Dados do PIB, de crescimento, um relatório do Banco Mundial. E ali no meio vai estar o ovo da serpente. Aquela informação que interessa, o fake que interessa a quem gasta tempo, estrutura e dinheiro. A identificação não é tão simples diante da fake news de verdade. Precisamos de uma conduta responsável do cidadão que pode disseminar. E precisamos ter em mente o seguinte: toda notícia que recebo e repasso, inclusive do ponto de vista jurídico, gera uma corresponsabilização. Um comentário feito em cima de um post calunioso, endossando esse post, gera corresponsabilização. Um compartilhamento gera corresponsabilização semelhante a do autor primeiro daquele insulto, calúnia ou difamação. Existe a necessidade de mostrar ao menos duas coisas à sociedade. Primeiro é que as pessoas precisam ter cuidado com o que consomem em matéria de informação. Chequem fontes confiáveis. E segundo: a responsabilidade é compartilhada. Daqui a pouco, você tem um criminoso divulgando crimes que têm um objetivo, um método, um foco, e você, de maneira incauta, ingênua, irresponsável, vai simplesmente amplificando e se tornando, por que não dizer, cúmplice e corresponsável por crimes que você muitas vezes nem sabe a motivação inicial. Mais do que nunca, as pessoas precisam compreender que elas têm um papel nesse jogo. Sou otimista. Faz só 10 anos que lidamos com isso. O fenômeno da rede social é muito recente. Quem está na faixa dos 40 anos é de uma outra era. Ainda são pessoas que estão se conectando. As novas gerações nascem conectadas. É óbvio que minha mãe de 75 anos vai compartilhar fake news rapidamente, sem muita checagem. E obviamente um jovem de 15 anos, acostumado com a linguagem, tem mais elementos e feeling para perceber o que é e o que não é fake news, buscando rapidamente fontes que permitam a ele mesmo fazer um fact checking.
Existe a necessidade de mostrar ao menos duas coisas à sociedade. Primeiro é que as pessoas precisam ter cuidado com o que consomem em matéria de informação. Chequem fontes confiáveis. E segundo: a responsabilidade é compartilhada.
Nesta linha de raciocínio, é possível dizer que os mais manipuláveis pelos fabricantes de fake news são os que estão em idade média ou mais avançada, que não têm tanta alfabetização digital?
Creio que sim. Nas eleições americanas, deu para perceber bem a diferença de circulação de informação nas costas para o meio dos EUA, naqueles cinturões. Eles consomem outras fontes de informação. Os grandes veículos de comunicação tiveram uma capacidade informativa nas costas que foi diferente do que no centro do país. A sociedade precisa, sobretudo as gerações mais antigas, ser alfabetizada. Mais do que alfabetizada, precisa tomar consciência do mundo em que está inserida e de que o mundo virtual e o real hoje são uma única coisa. O seu dinheiro está no mundo virtual hoje. O jovem não faz mais nenhuma diferenciação entre o real e o virtual. A vida nas redes, muitas vezes, é o que de mais real os jovens têm. Isso gera outros fluxos de relações, de conhecimento, de formação de opinião, de exercício da democracia, da participação social. E se não há mais diferenciação entre o real e o digital, os riscos são uma coisa só, e a última milha será sempre real. A última milha é sempre a tua vida. A última milha é uma criança sofrendo bullying e pedofilia, uma mulher ou homem sofrendo assédio, uma pessoa em depressão sendo incitada ao suicídio. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul já tivemos um caso de um jovem que virtualmente teve toda a orientação para cometer suicídio. E cometeu. Na última milha, tem alguém indo à urna e votando no candidato errado ou elegendo um projeto no qual nem ele acredita, mas está sendo manipulado para isso. Vide o exemplo da eleição americana, quando muitas pessoas deixaram de votar na candidata democrata porque pensavam que ela tinha uma doença que iria debilitá-la no exercício da função de chefe de Estado. Havia fake news dando conta de que a Hilary Clinton tinha aids. Ela teve dois ou três mal-súbitos durante a campanha. E pessoas disseram gostar dela, mas que não poderiam votar em uma pessoa que estava fraca para ser a comandante-em-chefe.
Você trabalha com clientes que tiveram sua honra afetada nas redes por ataques. Que efeitos psicológicos os episódios podem causar?
Impacta e muito. O ser humano, por essência, é desejoso de aceitação e acolhimento. Nenhum ser humano tolera e assimila bem ser objeto de ódio e de perseguição. O nível e a profundidade do impacto vão depender da pessoa, do momento da sua vida. Posso dar exemplos. A nadadora Joanna Maranhão disputava a Olimpíada no Rio. Tinha chance de medalha. E, porque ela qualificou mal numa prova em um dia, sofreu um linchamento virtual que foi inacreditável. No meio da Olimpíada, quando um atleta de alto desempenho precisa do fator anímico e psicológico como algo central, a Joanna sofre o linchamento virtual. E isso gera efeitos na vida real, porque não tinha acabado a Olimpíada ainda, ela estava nadando provas. No dia 12 de agosto de 2016, em meio ao Jogos, nós vamos, eu e ela, à Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio para fazer o registro de ocorrência. Ela faz o registro abalada, triste, e tem de voltar a nadar dois dias depois. É um atleta olímpico, que se reveste de um sentimento de patriotismo, e tem brasileiros que dizem que o melhor era ela ter sido abortada. Outro exemplo é o do Wagner Moura, o principal ator brasileiro de destaque internacional, junto com Rodrigo Santoro e Alice Braga. E o Wagner sofre um linchamento virtual dizendo que ele era uma pessoa que mamava nas tetas da Lei Rouanet. Nesse caso concreto, imputação caluniosa. É um crime contra a honra, porque imputa a ele conduta criminosa de corrupção. Aí eu pergunto: até que ponto isso pode gerar uma desconfiança de um estúdio americano? No sentido de olharem e dizerem que é melhor não tratar com ele porque pesa um indício de corrupção. Muita gente busca sair do ostracismo com ataques violentos para se promover a partir da imagem dos outros. São haters que não estão nas redes apenas para destilar ódio. A destilação do ódio se presta a uma estratégia de autodivulgação. Mas o ataque fake é mais perigoso. Ele é feito através de robôs, de uma estratégia que demonstra que, por trás daquele ataque, não tem uma pessoa ingênua sentada atrás de um computador tomando milk-shake. Tem um plano para depreciar um produto, atacar uma empresa, destruir uma imagem, gerar impacto político na vida de um candidato de direita ou de esquerda.
Você fala sobre a responsabilização do sujeito que propaga notícias falsas, mas a legislação e a Justiça não estão preparadas para isso. No que avançou a jurisprudência?
A legislação está desatualizada. Estamos trabalhando com um Código Penal defasado, que ainda trabalha com categorias de injúria, calúnia e difamação, categorias clássicas, que são compreendias e punidas a partir do referencial analógico. A legislação criminal é desatualizada e, por conseguinte, é branda. E gera sensação de impunidade porque é branda. Dificilmente há consequência criminal que gere um elemento central da norma penal: a capacidade de intimidação face a uma punição decorrente de um ato criminoso. A legislação cível é um pouco mais moderna porque gera responsabilização por dano moral. A Justiça já compreende que a divulgação nos meios digitais de material ofensivo gera dano, sim. Já é um avanço sobretudo da atuação dos juízes que, através da jurisprudência, vão firmando o entendimento de que a internet não é um campo de anonimato, existe responsabilidade. Temos ainda um déficit de ferramentas, sobretudo da polícia e do Ministério Público, para que faça uma efetiva e ágil investigação para que você consiga fazer aquilo que é fundamental no direito, que são a materialidade e a autoria. Estamos melhorando, a Polícia Federal tem hoje um laboratório muito poderoso de crimes cibernéticos. Mas temos, por exemplo, uma ofensa perpetrada por um jovem na Macedônia. Você faz como a responsabilização dele? Precisamos comunicar as pessoas de que aquilo que você está postando gera consequências na vida das pessoas, que podem se ferir, cair em depressão. Há um aspecto gravíssimo: uma vez lançada, você não controla a abrangência, o alcance e quanto tempo essa mentira vai continuar gerando efeitos. Fake news é um crime continuado, sem data para terminar. Isso abre todo o debate sobre o direito ao esquecimento. Você vai ficar por muito tempo, quiçá para sempre, tendo os efeitos negativos dessas ofensas pairando sobre a sua vida e você tendo que responder sobre isso.
O mundo jurídico vai ter de discutir de forma aprofundada o choque de princípios constitucionais: o direito ao esquecimento de alguém que cumpriu uma pena e o direito da sociedade de saber.
Muitas vezes os princípios se chocam. E aí você vai ter de entender qual princípio impera sobre o outro. Nesse caso, você tem quatro princípios que não necessariamente dialogam: o da liberdade de informação, do direito de opinião, da privacidade e do interesse público. Quando tivemos todo o debate sobre a Lei de Acesso à Informação, que é uma lei civilizatória, que garante que as pessoas tenham o direito de perguntar aos agentes e órgãos públicos informações relativas à gestão do erário, das políticas públicas, se entrou na questão da divulgação dos altos salários. Até que ponto isso feria ou não o direito de privacidade daquelas pessoas. Questionou-se inclusive o risco que elas sofreriam com relação a sequestro e outros crimes. Nesse caso, o Supremo entendeu que os dois princípios são válidos, mas havia a supremacia do interesse público. Vai acontecer um confronto de princípios constitucionais. Vão entrar em choque e depois vão ser dirimidos pelo Supremo. Até isso acontecer, vamos ter muita atividade jurisdicional, infraconstitucional, de juiz de primeiro grau, segundo grau, STJ, atacando o problema a partir das mais diversas perspectivas.
Ainda sobre a questão do direito ao esquecimento. Pode acontecer de ser republicada notícia antiga na rede sobre alguém que foi processado e absolvido, retuitando o link velho como se fosse uma notícia atual. O que se pode fazer nesse sentido? Tirar do ar essa notícia? E o acesso à informação?
Esse é o grande debate, e está muito avançado na Europa. A gente entra em um princípio universal de direitos humanos e penal de que nenhuma pena pode ter validade eterna. No direito brasileiro, nenhuma pena pode ser eterna. Isso é desumano, você fica estigmatizado, para sempre com aquela marca. Você vira um pária. Vai ter de acontecer o exercício do direito ao esquecimento, modulado com referencial de tempo pela proteção do direito de informação. Porque, por outro lado, você tem o direito de ser informado de que determinado médico foi condenado à prisão porque matou um paciente. E se ele continuar clinicando, eu quero saber que aquele médico foi condenado. Entendimentos que vão ter de vir para evitar que um dos lados da equação seja prejudicado. De um lado, você vai ter que proteger a pessoa, mas sem lesar o interesse da sociedade de saber o que essa pessoa fez ou deixou de fazer. Em algum momento, sim, vamos ter de regular. Porque, daqui a pouco, aquela pessoa está vivendo enclausurada. Você está saindo e não sabe se estão te olhando porque, de repente, viram teu rosto no Google. Quem tem recursos financeiros consegue empurrar um pouco para frente, você mexe no feed da notícia, usa robôs, turbina com informações positivas. Há estudos que falam que 87% das pessoas não acessam a partir da terceira página de busca. O cidadão comum, sem recurso, está a mercê de ficar eternamente sendo vilipendiado em uma sanção desumanizadora.