Em seus mais de 15 mil textos, Paulo Sant'Ana não apenas traduziu o cotidiano dos gaúchos. Muitas vezes, cedeu seu espaço para uso de seus leitores. Ao reproduzir na íntegra cartas e e-mails que chegavam a suas mãos, o cronista, morto na quarta-feira, cobrava de autoridades respostas para dramas individuais que simbolizavam o lamento de milhares de gaúchos. Após suas colunas, desempregados conseguiam trabalho, doentes sem dinheiro para um tratamento caro conseguiam ajuda. Às vezes, uma simples citação na penúltima página de Zero Hora era suficiente para mudar vidas. Confira seis histórias transformadas por Sant'Ana:
O presente de Natal que mudou o rumo de José Ubirajara
"Prezado Paulo Sant'Ana. Desde criança, nunca tive grandes amores por Papai Noel. Acho que nunca acreditei que existia. Com cinco anos de idade perdi minha mãe e fui criado por meus avós. Estive internado em um orfanato. Hoje, com 36 anos, deito-me no travesseiro e já quase não consigo dormir. Porque hoje é dia 17 de dezembro e meu filho está completando 10 anos de idade. Com muito custo faremos um bolo para ele. Mas e o presente? Não há presente."
A carta de José Ubirajara da Silva Quaresma, publicada quatro dias antes do Natal de 1999, emocionou o colunista. Motorista, o morador de Rio Grande estava sem emprego havia dois meses, desde que fora demitido de uma empresa de ônibus. Não poderia cumprir a promessa de dar um videogame e um violão aos filhos, caso fossem aprovados na escola: "Dói-me ter de dizer aos meus filhos que este ano o Papai Noel não passará em nossa casa", escreveu Quaresma a Sant'Ana, que reproduziu a carta.
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– Sou semianalfabeto. Até hoje, quando leio aquela carta, choro. Depois que escrevi, eu pensava: "Para quem vou mandar?". Aí, me veio Paulo Sant'Ana. É obra de Deus – lembra Quaresma, hoje aos 53 anos.
A família ganhou rancho de alimentos, violão, videogame e o presente maior: um diretor do Terminal de Contêineres (Tecon) do Porto de Rio Grande leu o apelo e ofereceu um emprego. Durante dois anos, Quaresma trabalhou como motorista do setor de compras e da administração. Até se aposentar previamente por conta de uma doença no coração.
– Recebi seguro por invalidez, e com ele comprei minha casa. Tudo o que tenho, agradeço ao padrinho Sant'Ana – afirma.
O cochicho que deu início à vida escolar do cadeirante Lino
Em 1985, poucas escolas em Porto Alegre aceitavam cadeirantes. Com sete anos, Lino Fabiano Freitas Paixão, portador de distrofia muscular progressiva, nunca havia pisado em uma sala de aula. Não fosse um ato ousado da avó, Elvira, ele não seria alfabetizado. Moradora do bairro Azenha, certa manhã ela decidira empurrar a cadeira de rodas do garoto até a frente do prédio de Zero Hora, na Avenida Ipiranga, e esperar que Paulo Sant'Ana, a quem só conhecia pela TV, deixasse o local.
– Ficamos na escadaria, no sol, até que saiu um homem do prédio, e minha vó correu atrás e começou a falar – conta Lino, hoje com 39 anos.
Sant'Ana convidou os dois a embarcarem em seu carro. Foram para a Escola Estadual William Richard Schisler, na Rua Visconde do Herval, a cinco quadras de ZH. O menino viu o colunista cochichar no ouvido da diretora.
– Imediatamente, por um milagre, ela me deu a vaga. Assim começou a minha vida escolar. E até hoje não sei o que aquele homem falou para a diretora – afirma.
Hoje casado com Adriana, 37, também cadeirante, Lino é técnico em informática. O casal mora no bairro Jardim Aparecida, em Alvorada, com os dois filhos, Nicolly, nove anos, e Gabriel, seis. Daquele encontro com Sant'Ana, que durou não mais do que 10 minutos, restou uma dívida:
– Quando foi embora, ele me deu um abraço e disse: "Agora, tu vais começar a escrever. Escreve pra mim, me manda cartas".
Mesmo cobrado pelo pai para cumprir a promessa, Lino nunca havia escrito a Sant'Ana até a emocionada homenagem que fez, na quinta-feira, pelo Facebook, após a morte do jornalista:
– Senão fosse por ele, eu não teria escrito esse texto que escrevi agora, não teria conhecido minha esposa pelo Orkut e, talvez, não tivesse filhos.
O apelo repetido para que Franciele voltasse a enxergar
Em dezembro de 2008, o médico Marco Antônio Becker, ex-presidente do Cremers, foi assassinado em um dos casos mais rumorosos da crônica policial gaúcha. Morreu guardando um pedido feito por Paulo Sant'Ana: que salvasse um dos olhos de Franciele Cunha Brandão, 18 anos, uma leitora de Porto Alegre. Por ser oftalmologista, Becker foi procurado pelo colunista para ajudar a menina. Aos 18 anos, Franciele teve descolamento de retina do olho direito. Ela corria o risco de perder toda a visão, já que, do esquerdo, enxergava pouco por uma doença congênita.
– Ela chorava muito, queria voltar a enxergar. E eu não sabia mais o que fazer – lembra a mãe, Maria Helena, 67 anos.
Em Porto Alegre, os médicos diziam que nada mais podia ser feito. Uma última esperança era viajar a Goiânia para uma consulta com o oftalmologista Marcos Ávila, um dos maiores especialistas do país em retina. A família não tinha dinheiro. Em 7 de outubro de 2009, Sant'Ana escreveu, em sua coluna em ZH, ao governo do Estado: "A menina está ficando cega aos poucos e ninguém mais tomou providências. Ao SUS parece que não adianta apelar: os brasileiros ficam cegos, ficam aleijados, ficam mudos, ficam surdos, ficam mutilados, e o SUS a tudo assiste olimpicamente".
– Eu estava fazendo um curso para pessoas que não têm mais a visão e, quando saí, tinha um monte de gente me ligando, falando de coluna. Foi uma surpresa – lembra Franciele, hoje com 30 anos.
Sem respostas, Sant'Ana voltou a carga alguns dias depois, na coluna intitulada "O olho de Franciele": "Até agora, nada de amparo. Ou melhor, nada de amparo objetivo. Até agora, só firulas".
Pressionada, a Secretaria da Saúde no governo Yeda Crusius decidiu pagar as passagens aéreas até Goiânia e os exames. Franciele e a mãe ficaram uma semana na cidade. Foram realizados exames de ponta, mas, segundo os médicos, apenas um transplante de células-tronco, ainda em testes no país, poderia trazer de volta a visão da garota. Franciele acabou perdendo totalmente a visão. Hoje, só percebe a claridade.
– Mas graças ao Sant'Ana conseguimos uma opinião mais especializada. Tivemos certeza de que fizemos tudo o que podia ser feito – avalia a mãe.
Dica sobre cachorro-quente ajudou negócio de Valdemar
Como fazia diariamente havia 21 anos, naquele final de tarde de 6 de dezembro de 2011 o vendedor de cachorro-quente Valdemar Soares estacionou sua carrocinha na esquina da Avenida Getúlio Vargas com a Rua Barão do Gravataí, na Capital. Havia fila de carros estacionados e clientes esperando na calçada.
– Chegavam carrões, perguntavam: "É aqui o cachorro-quente que o Paulo Sant'Ana recomendou?" – lembra Valdemar, hoje com 71 anos.
Comedor inveterado de cachorro-quente, o jornalista havia feito naquele dia uma pequena citação na coluna: "Há dois anos que como cachorro-quente dia sim, dia não, numa carrocinha que eu indico: fica na esquina da Getúlio Vargas com a Barão do Gravataí. Ainda não é também do meu gosto, mas me é muito palatável".
– Isso aqui pra mim foi uma mão. Peguei muita freguesia – recorda Valdemar, exibindo a coluna plastificada e anexada, como amuleto, próximo ao vidro da carrocinha, de frente para a rua.
Depois de descobrir o cachorro-quente de Valdemar, Sant'Ana passou a frequentar aquela esquina pelo menos uma vez por semana. Às vezes, dava-se ao luxo de extravagâncias, conforme confessou na mesma coluna: pedia cachorro-quente com duas de salsichas entre o pão. "Depois, ponho molho de cebola com tomate, ervilhas, milho verde, às vezes alface, recuso sempre a batata palha, ainda mais agora que me anda dramaticamente escassa a saliva".
O desabafo de Maria Teresa sobre o cadastro de doadores de medula
Era comum Paulo Sant'Ana reproduzir, na íntegra, cartas e e-mails de leitores: elogios, críticas, respostas de autoridades diante de cobranças e, principalmente, pedidos de ajuda. Muitas vezes, divulgava telefones pessoais e endereços de quem lhe escrevia. Foi assim em 6 de junho de 2008, quando transcreveu o relato de Maria Teresa Vieira da Silva, juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. A magistrada fez um apelo em nome da irmã, Maria Letícia, 54 anos, que lutava contra leucemia mieloide aguda havia um ano: "Desde a notícia de tão insidiosa doença, a família tem se esforçado no sentido de se conseguir um doador de medula, única opção de sobrevivência do doente que não encontra êxito, após cinco dolorosos e intermináveis ciclos de quimioterapia", escreveu.
– Tive ideia de escrever para o San'Ana, solicitando que divulgasse esse pedido para que mais pessoas se candidatassem ao banco nacional de medula – explica.
A coluna de Sant'Ana era um grito desesperado de socorro depois que toda a família fez o exame de compatibilidade, sem sucesso: "Parece mentira, mas de uma família de seis irmãos, um homem e cinco mulheres, a única que não encontrou compatibilidade de medula foi exatamente a doente. Todos os outros irmãos são compatíveis entre si, e ela, que necessita, não logrou encontrar nem na família, nem fora dela, um doador compatível", dizia.
– Foi uma repercussão imensa. Ele foi supergeneroso, publicando a carta na íntegra, com o número do meu telefone celular. Comecei a receber ligações do Brasil inteiro. Ficamos sabendo que houve um boom no cadastro de doadores – lembra.
Mais do que pedir ajuda para a irmã, o texto de Maria Teresa prestava um serviço ao desmistificar a doação de medula óssea:
– Infelizmente, pra minha irmã não surtiu efeito, porque ela acabou falecendo, mas muitas pessoas, tenho certeza, foram beneficiadas pela campanha que ele chamou pra si.
Três crônicas que ajudaram o poeta e amigo Luiz Miranda
2013 poderia ter sido um grande ano para o poeta gaúcho Luiz de Miranda. Indicado ao Prêmio Nobel de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), seu nome fora aceito pela academia sueca. Mas, naquele julho, sem emprego e aposentadoria, foi despejado do apartamento onde morava, no bairro Partenon, na Capital. Em carta ao colunista Paulo Sant'Ana reproduzida pelo colunista, lamentou: "Estou vivendo em completa miséria. Vivo há vários anos fazendo uma refeição por dia. Escolhi jantar. Não tenho nenhuma fonte de renda, pois poesia não dá dinheiro."
– Quando fui despejado, Sant'Ana fez três crônicas sobre mim. E me recolocou. As pessoas davam dinheiro. Eu estava na rua da amargura. Ele me ajudou, e eu voltei – lembra o escritor, hoje com 72 anos.
O poeta e o cronista se tornaram amigos em 1971, quando Miranda era redator no programa Sala de Redação, da Rádio Gaúcha. Ao longo dos anos, fortaleceram o laço fraterno, tendo em comum o gosto pela música e pela literatura. Em seus livros, Miranda escreveu três poemas para Sant'Ana.