Leia todas as histórias contadas nesta matéria:
Especial: meu irmão gêmeo morreu
Henrique: "Nunca falei a respeito. Tenho medo de que isso exploda algum dia"
Andrea: "Dizem que eu fiquei igual. As pessoas relembram dela em mim"
Guilherme: "Fiz a tatuagem para tê-lo mais perto de mim"
Fábio: "Como a saudade dói, como a saudade dói"
O drama de Fábio e de outros tantos brasileiros que perderam o gêmeo é enfrentado na solidão, como se fosse um luto igual a qualquer outro, mas em vários países essa dor recebe abordagem diferenciada. Há no Exterior organizações que são especializadas em dar um suporte específico, caso do Twinless Twins Support Group, dos EUA, ou do Lone Twin Network, da Inglaterra. Além de fornecerem orientação e divulgarem artigos de especialistas, essas instituições promovem encontros entre os “gêmeos sem gêmeo”, fruto da percepção de que tal troca de experiência é fundamental para lidar com a perda. O Lone Twin surgiu há quase 30 anos, a partir de um estudo realizado por uma psicoterapeuta que vivenciava pessoalmente o problema, Joan Woodward.
A existência desses grupos decorre da convicção de que a morte do irmão gêmeo desencadeia dificuldades muito particulares – especialmente a sensação de que uma metade de si está faltando. Outras condições típicas são o sentimento de culpa por ter sobrevivido, a sensação de que se ficou deslocado dentro da família, o peso de ter de viver por dois, a ideia de que se deixou de ser especial. Esses gêmeos enlutados também afirmam, de forma quase unânime, que não conseguem encontrar compreensão. Woodward já disse que "o luto pelo gêmeo é um conceito incompreensível para as outras pessoas, porque ser tão próximo de alguém é algo que está além da sua experiência".
Uma das poucas pesquisas sobre essa proximidade foi realizada em 1989, na Itália, por Alessandra Piontelli, que acompanhou vários gêmeos desde o útero (por meio de ultrassom) até a infância. Ela descobriu que a relação entre os dois já apresentava uma certa característica – mais brincalhona ou mais hostil, por exemplo – ao longo da gestação, e que essa característica mantinha-se inalterada depois do nascimento.
O estudo sugeriu que relações pessoais profundas e significativas podem estabelecer-se já no útero – na condição de maior proximidade possível entre dois seres humanos, um a centímetros do outro pelo prolongado período de nove meses.
Curiosamente, as pesquisas de Joan Woodward com centenas de gêmeos revelaram que o trauma maior não era experimentado por aqueles que perdiam o irmão depois de uma longa convivência, mas sim pelos que ficaram sozinhos logo após o parto, porque o irmão morreu nas primeiras horas ou nos primeiros dias de vida. Ou seja, eles sentiam a falta de alguém de quem sequer tinham uma lembrança consciente. Nesse caso enquadra-se Maria Lúcia Gelain, nascida há 37 anos em São José do Ouro, norte do Estado, professora de Português no município catarinense de Herval d’Oeste.
Os pais de Maria Lúcia souberam que a gestação havia sido de gêmeas só após as duas nascerem. Até então, o médico havia identificado apenas um batimento cardíaco no ventre. Como esse batimento era irregular, apontando algum tipo de disfunção, resolveu antecipar o parto. Nascida com sete meses, Maria Lúcia pesava apenas 1,8 quilo. A irmã era mais robusta: tinha 2,3 ou 2,4 quilos.
Inicialmente, os profissionais do Hospital São José achavam que era Maria Lúcia quem não vingaria, por causa do tamanho, mas logo constataram a falha cardíaca na outra. A menina acabou morrendo três ou quatro dias depois do parto. Muito frágil, com apenas 1,3 quilo, a sobrevivente foi transferida para um hospital de mais recursos, em Passo Fundo. Estava lá quando a gêmea foi sepultada.
Maria Lúcia soube da existência dessa irmã apenas anos mais tarde, por relatos dos pais e dos irmãos. Eles não tinham sequer uma foto da gêmea para mostrar, algo que ela lamenta até hoje. Não muito tempo atrás, soube pela irmã mais velha que a gêmea chegou a ter velório, em um caixãozinho de madeira. Diante da descrição da cena, esforçou-se para formar uma imagem do rosto da mana perdida.
Mesmo sem ter conhecido a outra, Maria Lúcia diz ter convivido desde a infância com uma sensação de ausência.
– Eu tinha um sentimento, quando criança, de falta, de ter uma irmã gêmea e de ela não estar perto de mim. Eu perguntava como seria tê-la comigo e questionava o motivo para ela não estar ali.
Na adolescência, também sentia uma coisa diferente relacionada com essa perda. Pensava: sou gêmea, mas ela morreu. Era um sentimento de não poder compartilhar as coisas. Até hoje sinto falta, um sentimento de saudade, de querer saber o que ela estaria fazendo, onde moraria, com quem teria casado – relata Maria Lúcia.
A professora também percebe em si um certo sentimento de culpa por ter sido a que sobreviveu, especialmente nos grandes momentos da vida, como o nascimento da própria filha, Alice, em agosto passado. E um estremecimento ao pensar que, sim, poderia ter sido o contrário. Poderia ter sido ela a que não viveu. De certa forma, a identidade das duas esteve embaralhada desde o início. Depois do óbito, o pai das meninas foi a um cartório para registrá-las. A mulher orientou-o a batizar a sobrevivente como Maria Júlia e a menina morta como Maria Lúcia.
Ele se confundiu: Maria Lúcia recebeu, para levar pela vida, a identidade da gêmea perdida. Mais tarde, teve um momento de revolta – chegou à conclusão de que Maria Júlia era mais bonito.
Outro fato insólito é que Maria Lúcia acabou por ter dois padrinhos e duas madrinhas. Como os pais haviam, antes do óbito de Maria Júlia, escolhido casais para batizar as duas meninas, sentiram-se desconfortáveis diante da hipótese de desconvidar um deles. A sobrevivente herdou os padrinhos da que se fora. Em todas as festas, recebia deles os presentes que seriam para si e os que seriam da irmã. De certa forma, era como se a outra tivesse algum tipo de vida na vida dela.
Ainda hoje, Maria Lúcia fala de Maria Júlia como de alguém muito próximo. Descreve o olho esverdeado e o cabelo escuro, dos quais soube pelos familiares.
– É algo marcante na minha vida. Porque eu acredito que o convívio dentro do útero deixa algum tipo de marca. Fico triste por não conseguir lembrar dessa convivência, porque nós convivemos ali. Jamais considerei que tenho só dois irmãos. Sempre falo, com muito orgulho: tenho uma irmã gêmea.