Era uma vez o Bruno, que passava o dia ouvindo música e admirava o trabalho da Camille, que já conhece mais de 30 países mas imaginava que a rotina do Flávio é que era prazerosa, afinal ele passava o dia provando vinhos.
O trio tem o que chamam por aí de trabalho dos sonhos. Sem compromissos com horários, sem precisar estar no escritório, sem reuniões diárias nem metas de produção. Suas atividades aparecem, de tempos em tempos, em listas de diferentes sites e em diferentes idiomas. Essas listas sobre o emprego mais maravilhoso do mundo ganharam espaço nas redes sociais por causa de duas vagas recentes (ambas já preenchidas): a de zelador da Ilha Bardsey, em Aberdaron, bem ao leste no Reino Unido, com salário de mais ou menos R$ 83 mil mensais; e, no Brasil, a de tagger na Netflix, um cara que deve passar o dia todo assistindo a filmes e séries e designando palavras-chaves a cada um deles. Uma função tão desejada quanto misteriosa. A vaga ficou com Rafael Ceribelli, que gentilmente agradeceu o convite da reportagem de ZH, mas revelou que contratualmente não pode falar sobre o que faz.
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O paulista Bruno Telloli, 32 anos, é o único brasileiro contratado pelos suecos do Spotify para criar listas de músicas. A capixaba Camille Panzera, 26, trancou o curso de Direito para viajar pelo Brasil e pelo mundo e relatar suas experiências no site Melhores Destinos. O gaúcho Flávio Zílio, 52, serve sua primeira dose de vinho perto das 8h e, até o fim do expediente na Vinícola Aurora, às 17h, já fez outras 39 provas da bebida.
No Spotify, Bruno traz na carteira de trabalho o título de editor de músicas. Mas, entre aulas de karatê, ioga e comida de graça – de chocolate a cerveja –, o título que gosta mesmo de ostentar é o de campeão do game Fifa. Na hora de pegar no pesado a valer, Bruno é encarregado de pensar e testar playlists – seleções musicais que vão de "Não sou louco, só toco Air Guitar" até "Hora da Faxina".
Quem chega ao escritório do Spotify estranha o prédio baixo em uma rua com mais residências do que empresas na Vila Madalena, em São Paulo. Estranha porque as moderninhas Google e Netflix, por exemplo, ficam em lugares bem mais movimentados e altos da capital paulista. No edifício de dois andares e um grande pátio, Bruno e os colegas ocupam as salas 6 e 7. No primeiro andar, trabalham 25 profissionais – outros cinco estão alocados na unidade do Rio de Janeiro – em uma sala sem divisórias. Quando o visitamos, fazia 40 dias que Bruno não aparecia por lá. Isso porque nasceu seu primeiro filho, Joaquim, e ele decidiu que trabalharia de casa nos primeiros meses do recém-nascido. Formalmente, ele não está em licença-paternidade – ainda. Na empresa, o benefício é de seis meses, que podem ser usufruídos em até três anos, tudo de uma vez ou em diferentes períodos. Neste momento de sua vida, Bruno optou por fazer as listas de músicas da sala de casa.
– Tem dias em que mando mensagem para a chefe (a espanhola radicada em Nova York Rocío Guerrero Colomo) e aviso "amanhã, estarei fora" e, para ela, tudo bem. Se no final da semana eu entregar o que a empresa espera de mim, posso fazer o horário que quiser – afirma.
A principal ferramenta de trabalho que Bruno usa, um grande fone de ouvido, é tirada cuidadosamente de uma caixa na primeira gaveta. Uma máscara do cantor Justin Bieber e alguns bonecos do filme Star Wars ornam a mesa do editor. Se precisa desopilar, ele tem a liberdade de descer um lance de escadas e tocar violão ou jogar videogame. Filhos e cachorros estão liberados no escritório.
Conheça o escritório do Spotify no Brasil em vídeo 360º:
Em todo o mundo, 55 pessoas fazem o mesmo trabalho que ele: ouvem e pesquisam sobre músicas e criam novas listas para o aplicativo. De tempos em tempos, o grupo se encontra em algum lugar do mundo – em um ano e meio como funcionário da empresa, ele já participou de reuniões nos Estados Unidos, na Suécia e na Islândia – para discutir estratégias de trabalho.
– Em que emprego no mundo você recebe para ouvir música? Pode parecer muito ridículo, mas todos os dias eu acordo contente de poder ir trabalhar, por estar fazendo um negócio de que gosto, por a empresa ser bacana, por meus companheiros de trabalho serem legais. Pelo conjunto da obra.
Bruno já atuou em empresas mais formais. Quando ainda estudava Turismo, trabalhou na antiga companhia aérea Vasp. Lá, alguns colegas tinham banda, e ele ajudou o grupo a criar um site. Passou a fazer esse trabalho informalmente para outras bandas. Por causa disso, foi chamado para o MySpace no Brasil. Largou o Turismo e foi estudar Publicidade. Foi funcionário da Nokia e da Apple até ser contratado pelo Spotify. Hoje, aos 31 anos, reconhece que ganha muito bem se comparado aos outros colegas do tempo da faculdade. Ele não quis revelar seu salário.
Em meio a tanta vantagem, tinha que existir alguma desvantagem.
– Minha mulher brinca: "Queria eu ficar ouvindo músicas o dia inteiro". Respondo: "Posso ficar ouvindo música o dia inteiro, mas às vezes não é música boa. Também tenho que ouvir música ruim".
O mundo como escritório
Em quase quatro horas de conversa, Bruno praticamente não apontou "problema" no seu trabalho. Seus olhos, contudo, brilharam quando soube que a reportagem entrevistaria uma turista profissional.
– O meu emprego é o dos sonhos, mas o dela é mais – diz. – Agora, o que deve ser muito legal mesmo é ser o cara que dá nome às operações da Lava-Jato – brinca.
Faz cinco anos que a capixaba Camille Panzera, 26 anos, precisa explicar e reexplicar o que faz como "editora de destinos". Esse é o nome formal, impresso na carteira de trabalho. Traduzindo: Camille é uma turista profissional. Basicamente, ela viaja, fotografa, volta, organiza as imagens e escreve sobre as experiências. Mas, ela afirma, isso cansa. Recentemente, voltou de Tóquio, no Japão, onde passou 15 dias. Em cada um deles, caminhou cerca de 17 quilômetros. O namorado reclama quando a acompanha. Por isso, em quase todos os roteiros ela segue sozinha.
Antes de Camille ser contratada, o Melhores Destinos – hoje um dos blogs de viagens mais acessados do país – era feito apenas pelo diretor da empresa, o analista de sistemas Leonardo Marques. Ela era apenas uma leitora muito assídua. Os comentários e as sugestões de melhoria renderam o convite de trabalho. Com 21 anos, Camille virou a primeira editora de destinos e a primeira funcionária da empresa.
– Se eu tivesse terminado a faculdade de Direito, estaria, provavelmente, estudando para algum concurso público. Os meus colegas da época não estão fazendo coisas tão legais quanto eu – conta.
O escritório formal é o mundo. Durante boa parte da carreira, retornava à casa dos pais, em Vila Velha, no Espírito Santo, onde organizava e postava seu material de viagem. Há um ano, resolveu alugar um apartamento em Brasília para ficar mais perto do namorado e do principal escritório do blog.
Enquanto mais de 10 milhões de brasileiros estão sem emprego, Camille realiza sonhos. Quando ainda era estudante de Direito, nunca tinha saído do Brasil. Hoje, conhece mais de 30 países.
– As pessoas não costumam acreditar. É muito comum acharem que faço nada. Se estou viajando, acham que estou de férias. Se estou em casa, no computador, também é como se não estivesse fazendo nada – diz Camille, que tem outros cinco colegas de turismo remunerado.
Sem rotina, a capixaba vai quando quer ao escritório. Ela não sabe precisar quanto tempo, em um ano, fica em casa. Além do Japão, neste ano já foi a Belo Horizonte e veio a Porto Alegre. A próxima viagem está marcada para junho. Vai para Hong Kong, Seul e Bali. Entre abril e maio, ela precisa terminar de escrever o guia sobre o que viu no Japão e desempenhar as outras atividades que a função exige: ler sobre transporte público dos lugares, sobre a cultura dos países e das principais cidades pelas quais vai passar, procurar possíveis dificuldades que pode encontrar, fazer o orçamento total da viagem e reservar hospedagens – nunca muitos dias no mesmo lugar, para poder experimentar ao máximo –, comprar passagens e organizar o roteiro por temas. Ela garante que isso toma muito tempo.
Camille não revela seu salário mensal, mas diz que é mais do que imaginava que ganharia se tivesse seguido carreira no Direito. Nas viagens, suas despesas são pagas pela empresa. Só tem uma coisa que atrapalha um dia de trabalho:
– Chuva é de lascar. É a pior coisa para quem viaja.
A lista de desvantagens é pequena. A ausência em comemorações, como aniversário dos pais, irmãos e namorado, é citada por ela como se estivesse desapontada consigo mesma. Só que a própria Camille contemporiza:
– Eles acham ruim eu ficar tanto tempo fora. Mas estão acostumados, me apoiam. Onde mais eu teria um emprego como esse?
Degustador mistura prazer com trabalho
Camille conversou com ZH por telefone na quinta-feira, 14 de abril. No sábado, a reportagem viajaria a Bento Gonçalves, para entrevistar e fotografar Flávio Zílio, o enólogo que há 27 anos passa o dia provando diferentes doses de vinho. Camille comentou:
– O trabalho do degustador de vinhos deve ser muito prazeroso, ainda mais para um apreciador. Quem vê de fora pode imaginar que é moleza, mas é trabalho igual, como o meu.
Aos 52 anos, o gaúcho de Muçum, no Vale do Taquari, orgulha-se da função.
– Todo mundo diz que tenho o melhor trabalho do mundo. São cerca de 40 doses de vinho por dia para garantir que vamos elaborar os melhores. Sou um homem de muita sorte. Além de provar vinhos todos os dias, conheci lugares e pessoas que jamais imaginei que fosse conhecer. Isso não tem preço – conta o enólogo-chefe da Vinícola Aurora, de Bento Gonçalves, na Serra.
Foi o pai que o incentivou a transformar o prazer em profissão ("Se você gosta tanto de vinho, por que não vai estudar Enologia?"). Durante três anos, Flávio ficou numa escola em regime de internato, estudando a arte de elaborar vinho – ele nunca fala fabricar, diz que não é respeitoso com a bebida. Um professor o chamou para trabalhar em uma pequena vinícola de Bento. Três anos depois, o próprio chefe indagou se ele tinha ambição de ingressar em uma empresa maior e o indicou para a então enóloga-chefe da Aurora. Desde 2010, ele chefia o setor. A rotina de Flávio, de segunda a sexta, consiste em chegar às 7h junto aos cinco colegas que formam sua equipe e organizar as tarefas. Uma hora depois, já caminha por entre os enormes barris, pega uma taça limpa e uma garrafa de água e sai a tomar a primeira prova do dia.
Dificilmente um enólogo fica bêbado durante o trabalho. Três coisas garantem sua saúde: pão, água (que também ajudam a limpar o paladar) e o descarte – nem sempre engole-se o vinho.
Degustador de vinhos – e de cerveja e de chocolates – está sempre entre as profissões dos sonhos das listas que se espalham pela internet. Flávio fecha os olhos, bebe mais um gole e admite que é um privilegiado, mas acrescenta que tem outras funções: gerenciar a equipe, garantir que os equipamentos estejam em ordem, fazer orçamentos de manutenção e prever mudanças na estrutura de elaboração dos vinhos.
– Gosto tanto de fazer isso. Elaborar um vinho é uma arte. E quando um fica pronto, nos juntamos e bebemos. Isso me dá muito prazer. Em alguns anos, espero fazer isto: servir uma nova taça apenas por prazer. E é natural que seja assim. Meu sonho é ter mais tempo para meu filho – conta, fazendo planos para o pequeno Davi, de dois anos e meio. – Acho que ganho bem. Não vou ficar rico, mas não tenho grandes pretensões materiais. O importante é ter um dinheirinho para preparar meus filhos para a vida.